O futebol não pode comportar a concretude da morte
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A morte faz parte do futebol. Mortes simbólicas. A derrota no último minuto. O título perdido para o rival. A noção de que aquele tempo não voltará e que o massacre imposto pelo outro time terá que ser absorvido. Levantar e seguir. A tristeza absoluta que vem com o fracasso, com a perda, com a tragédia de uma virada impossível quando parecia que tínhamos ganhado. Essa morte faz parte. Essa morte nos torna mais fortes. Essa morte é intrínseca ao jogo e vem justamente dessa relação boa parte da beleza do futebol.
A morte concreta, essa não pode ser aceita. Os tiros de uma polícia despreparada. Os gases de uma polícia desesperada. Os atropelamentos de uma polícia militarizada.
O que aconteceu no Chile durante a partida entre Colo-Colo e Fortaleza, quando dois adolescentes morreram - uma menina de 18 anos e um menino de 13 anos - é inaceitável e intolerável.
Teriam morrido, segundo o La Tercera - periódico chileno - atropelados por um caminhão de gás da polícia que estava ali afugentando a torcida nos arredores do estádio. Havia torcedores tentando invadir ou a aglomeração na parte de fora se deu porque a polícia estava tocando o terror? Os dois torcedores mortos estavam tentando invadir ou escapar da fúria da polícia? Não sabemos ainda.
Imagens da polícia em questão exibem a mais completa militarização dessa força: pronta para abater o inimigo. No mundo ocidental inteiro é assim hoje. As polícias são ultramilitarizadas. Como verdadeiros exércitos. O inimigo? Nós. Especialmente o "nós" periférico.
Verdade: é errado tentar invadir o estádio para ver seu time. Mais errado ainda é tratar invasores como se fossem membros de um exército inimigo que tenta tomar nosso território e está fortemente armado. Mas o argumento do "não pode invadir" já não deve mais ser usado diante da morte de uma torcedora e de um torcedor porque, se for, vai parecer querer diminuir o que aconteceu. A bem da verdade nem sabemos o que aconteceu.
Duas pessoas estão mortas. Disso sabemos.
O que faz a Conmebol? Uma nota de pesar. Está estampada na página principal de seu site? Não. No site o que temos é "Business as usual". Uma notinha de rodapé da "partida interrompida" e é isso.
Conmebol, Colo-Colo e polícia chilena terão que responder pelas mortes. Tanto faz agora quem vai ficar com os pontos desse jogo. Coloquemos em contexto: duas pessoas estão mortas. Uma torcedora e um torcedor não voltarão para suas casas. Famílias estarão para sempre transformadas. Nunca mais verão uma partida de futebol do mesmo jeito - se é que verão.
Quando a partida foi interrompida porque torcedores, desesperados e revoltados com a notícia das mortes de alguns dos seus, invadiram o campo, a Conmebol foi ao vestiário do Fortaleza pedir que o time permanecesse ali porque o confronto teria que ser reiniciado. Contratos, vocês sabem. A CBF se manifestou: quer os pontos para o Fortaleza. As mortes? Bem, não temos nada a ver com isso.
Dentro do estádio, a polícia era privada segundo informa a coluna do PVC aqui no UOL. Enquanto fora havia uma polícia ultramilitarizada disposta a passar por cima de torcedores, dentro havia quase nada de polícia. Privada, vocês sabem. Custa caro colocar muita gente para fazer o policiamento interno. Caro treinar essa turma. Caro. Caro. Caro.
A falta de treinamento é generalizada. Polícias despreparadas, violentas e premiadas pelas mortes alcançadas. Policias treinadas para proteger os interesses do capital privado.
Não faz muito tempo um torcedor do São Paulo foi assassinado pela polícia nos arredores do estádio tricolor. Um tiro seco. Sem motivo algum. Quem ainda frequenta jogos sabe como a polícia trata quem não está nas cativas e nos camarotes. Relato recente de um policial de São Paulo revelou como ele mandava, por puro sadismo, torcedores de um determinado time entrarem desavisadamente pelo portão do rival. Por farra.
É isso o futebol? Ele existe apenas na dimensão do "negócio" e vai passando por cima da morte? Polícias podem nos tratar como inimigo a serem abatidos? Aceitamos isso alegremente?
Conmebol, CBF, Fifa, Uefa, Concacaf e demais empresas que fazem a gestão desse esporte: eis aí a lista de responsáveis pelo atual estado miserável de coisas. Comandadas por um mesmo sujeito político. Um executivo que pouco entende do jogo mas que supostamente manja muito de entradas e saídas, investimentos, distribuição de lucros, gerenciamento de receitas, networking com patrocinadores, viagens nababescas, luxo. As coisas não vão bem e precisam mudar. Futebol não é negócio. Futebol é fenômeno social. Gostamos de dizer que é maior do que a vida mas estamos vendo que, assim administrado, está se tornando tão sombrio quanto a morte.
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