'Descobri que minhas filhas gêmeas têm a doença da morte em vida'

As gêmeas Gabriela e Beatriz, 26, tiveram uma infância saudável até os 9 anos, quando a família notou algo diferente nos pés delas. Após investigações, foram diagnosticadas com ataxia de Friedreich, doença conhecida como "morte em vida". Progressiva, a enfermidade afeta diferentes partes do corpo, limita movimentos, a fala e a função dos órgãos.

A situação levou a mãe Ana Cláudia Guimarães, 52, a abrir uma vaquinha online (cliquei aqui para acessar) para comprar equipamentos e pagar tratamentos. A VivaBem, ela contou a história da família.

  • ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.

'Doença monstruosa'

"Elas nasceram com oito meses, tiveram uma infância normal e eram muito danadas, corriam pra lá e pra cá, e a Gabi gostava de patinete. Às vezes, passavam o fim de semana na casa de colegas.

A partir dos 9 anos, a família achou que elas estavam com o pé cavo [uma curvatura no pé]. Levei a vários ortopedistas, até que um disse que o problema era neurológico.

Meninas cresceram saudáveis, gostavam de correr e de brincar
Meninas cresceram saudáveis, gostavam de correr e de brincar Imagem: Arquivo pessoal

Elas passaram por geneticista, neurologista, fonoaudiologia e fisioterapia. Antes de receber o diagnóstico, vi que o neuro tinha anotado 'ataxia cerebelar' e fui pesquisar.

Vi tipos de ataxias em que os sintomas não são tão avassaladores e torci para que não fosse a de Friedreich, mas, infelizmente, quando recebi o resultado do sequenciamento genético, era.

Continua após a publicidade

Entrei em choque, parecia que o chão estava se abrindo. O que viria dessa doença?
Ana Cláudia Guimarães

Elas começaram o tratamento com fisioterapia, terapia ocupacional e pilates. Ficaram um tempo internadas para que me dessem noção de como agir diante de uma doença monstruosa, que é chamada de 'morte em vida'.

As irmãs tiveram uma infância saudável até os 9 anos
As irmãs tiveram uma infância saudável até os 9 anos Imagem: Arquivo pessoal

'Elas ainda andavam normalmente'

Quando recebemos o diagnóstico, em outubro de 2010, elas andavam normalmente ainda, e os sintomas foram piorando, cada vez mais nítidos. O médico pediu que usassem andador, mas elas não queriam de maneira alguma, não aceitavam.

Mas usaram o andador por um ano, até que a geneticista disse que já estava perigoso e tinham de ir para a cadeira de rodas. Foi aquele choro, meu e delas, e fizemos uma campanha de arrecadação para comprar as cadeiras.

Continua após a publicidade
Gêmeas tiveram diagnóstico em 2010
Gêmeas tiveram diagnóstico em 2010 Imagem: Arquivo pessoal

Gabriela e Beatriz ganharam bolsa integral pelo ProUni, e Gabi concluiu o curso de biomedicina. Ela passou por preconceito, discriminação e entrei na Justiça para que tivesse um auxiliar em sala. Ganhei por danos morais e contrataram uma pessoa para ajudá-la.

A doença causa escoliose, e a delas é como um S, como se fossem se quebrar ao meio. Elas queriam fazer cirurgia, mas o médico disse que, com o grau delas, se fizer, não voltam, porque o pulmão já está sendo muito comprimido.
Ana Cláudia Guimarães

Há sete anos, elas foram diagnosticadas com ceratocone [doença ocular que muda a estrutura da córnea] depois de reclamarem da visão. Durante o tratamento, sempre perguntei ao médico se ficariam cegas. Ele dizia que não, mas o campo de visão foi diminuindo.

Em janeiro, descobrimos que estão ficando com o nervo óptico atrofiado, tinham de fazer cirurgia, mas custa R$ 5,5 mil cada olho. Foi outro baque.

O que mais mata nessa doença são os problemas cardíacos, e as duas têm hipertrofia do ventrículo esquerdo. Elas engasgam muito com água, que já foi para o pulmão, e ficaram dias internadas por isso. O problema também afeta a fala, e elas ficam nervosas quando perdem o ar e não conseguem falar.

Continua após a publicidade

Tem dia que a doença dá muita fadiga, e Bia quer dormir até meio-dia, mas a Gabi acorda no máximo às 9h. Elas fazem fisioterapia duas vezes por semana em casa, a pessoa cobra um valor irrisório só para pagar a gasolina da moto, e às vezes uma professora de pilates dispõe um horário sem custo. Mas elas tinham de fazer mais coisas.

Beatriz e Gabriela precisam de cadeiras de rodas para pessoas com tetraplegia
Beatriz e Gabriela precisam de cadeiras de rodas para pessoas com tetraplegia Imagem: Arquivo pessoal

Hoje, elas levam a vida na cadeira de rodas e estamos tentando cadeiras para tetraplégicos, porque o pescoço delas já não têm muita coordenação, e a médica disse que pode até quebrar.

As duas passam o dia mais no quarto, às vezes vão para a cadeira de rodas, ficam na sala assistindo à TV, depois voltam para a cama, porque sentem dor pela escoliose. Depois que conseguimos camas hospitalares doadas, melhorou bastante, mas elas dependem totalmente de mim, e essa é uma das revoltas da Beatriz.

'Sou mãe solo'

Não tenho condições de trabalhar, porque cuido delas e dos meus pais que são idosos: ele, com 84 anos, não anda, e ela com 78, é hipertensa e tem diabetes. Sou mãe solo. Só quem nos dá uma mão é meu pai, com a aposentadoria dele.

Continua após a publicidade

Depois que elas foram para a cadeira de rodas, por volta dos 16 anos, a própria família paterna se afastou, e elas não têm os amigos que antes iam para casa no fim de semana.

A mãe com as gêmeas Beatriz e Gabriela
A mãe com as gêmeas Beatriz e Gabriela Imagem: Arquivo pessoal

É uma tempestade de emoções que afeta toda a família, principalmente a mim, porque não conto com apoio.

'Choro escondido'

Renunciei minha vida e estou vivendo para minhas filhas e meus pais. Se pudesse, trocaria de lugar com elas, mas dou o que posso, que é amor, carinho e ir levando aos médicos.

A sensação é que vou dormir e, ao amanhecer, posso ter a pior notícia, que é a perda de um filho. Mas elas têm uma vontade de viver incrível, apesar dos problemas.

Continua após a publicidade

Tenho um problema sério de transtorno de ansiedade generalizada e depressão crônica. Também estou com duas hérnias de disco e fissura na lombar. O médico quer operar, mas tenho medo, porque se já ando com dores, imagina como seria para cuidar dessas meninas. Agora, estou com suspeita de câncer de mama.

A vida tem sido esperar amanhecer, os dias parecem iguais e são poucos os momentos em que a gente consegue sorrir. Na frente delas, tento manter a minha força, mas choro escondido."

Entre as ataxias, a mais grave

Ataxia é um problema na coordenação motora. As principais queixas são dificuldade para andar, na coordenação motora fina das mãos e voz embargada. São sinais que, por falta de conhecimento, levantam a suspeita de uma pessoa alcoolizada.

Há diferentes tipos de ataxias, divididas em dois grandes grupos: dominantes e recessivas. Diversos genes estão associados a elas, e cada um, quando alterado, vai implicar numa forma de ataxia. As dominantes costumam dar os primeiros sinais na idade adulta, enquanto as recessivas, caso da ataxia de Friedreich, geralmente começam na infância, entre 8 e 10 anos, mas podem ter apresentação tardia.

A ataxia de Friedreich tem progressão variada, mas afeta vários sistemas do corpo, diferentemente de outros tipos. Há complicações cardíacas, surdez, alterações no olho, diabetes e problemas musculoesqueléticos, por exemplo. Algumas formas são lentamente progressivas, outras não evoluem com o passar do tempo. Gabriela e Beatriz sabem que têm a doença.

Continua após a publicidade

Como, em geral, os pacientes têm consciência da doença e veem a progressão das complicações físicas, a ataxia de Friedreich é chamada popularmente de doença da "morte em vida". O termo, no entanto, é evitado pela comunidade médica por causar uma desesperança nos tratamentos e terapias de suporte.

O diagnóstico pode demorar e ser desafiador. São poucos geneticistas no Brasil, cerca de 400, e um número menor na atenção pediátrica, faixa em que a doença dá sinais. Além disso, a alteração genética é muito específica.

Testes genéticos usuais não conseguem pegar essa alteração. O médico tem de ter a suspeita de Friedreich e pedir teste específico para ela. É mais um ponto de dificuldade.
Matheus Castro, geneticista, coordenador do comitê de neurogenética da SBGM (Sociedade Brasileira de Genética Médica) e membro do corpo clínico do Hospital das Clínicas da USP e do Hospital Sírio-Libanês

Por que afeta o corpo todo?

O gene afetado na ataxia de Friedreich produz uma proteína importante para a mitocôndria, uma parte das células que "fabrica" energia. Ela está em quase todos os tecidos do corpo, então os órgãos que mais consomem energia são os mais prejudicados, como cérebro, olhos e coração. "O problema gera radicais livres que são tóxicos e causam lesão, principalmente em células nervosas", diz Castro.

No mundo, só há um medicamento para a doença. O composto omaveloxolona, produzido pelo Biogen, foi aprovado pela FDA, agência americana reguladora de medicamentos, e pela Comissão Europeia. No Brasil, seu registro foi aprovado pela Anvisa e poderá ser comercializado após a aprovação do preço máximo pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) e decisão da empresa. "Ele diminui a produção de radicais livres e a progressão da doença", explica o médico. O remédio via oral é indicado para pessoas a partir dos 16 anos. Um estudo com 94 pacientes mostrou bons resultados do medicamento.

Continua após a publicidade

Medicamento aprovado não é garantia de oferta no SUS. Para entrar no Sistema Único de Saúde, ele precisa ser avaliado e recomendado pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) e aprovado pelo Ministério da Saúde. Mas nem todos os remédios registrados passam por essa avaliação ou são incorporados ao sistema público de saúde.

Enquanto a medicação não está disponível, o tratamento de suporte é importante. Além de acompanhamento com médicos especialistas para cada condição, como cardiologista e oftalmologista, fisioterapia, pilates e atividades na água ajudam no movimento do corpo.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.