Será alucinação? Estamos vivendo a era da ilusão e do delírio coletivo
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As fake news criaram a chamada era da pós-verdade. Será que, agora, com deep fakes e algoritmos afiados, estamos vendo nascer a era da ilusão e do delírio coletivo? Vamos aos fatos - ainda que eles não importem para muita gente.
Em 2016, o Oxford Dictionary elegeu "post-truth", pós-verdade, como palavra do ano. O termo foi criado em 1992, mas, naquele ano, com as redes sociais ganhando força na disseminação de fake news e Donald Trump eleito nos EUA, para o dicionário, pós-verdade relacionava-se ou designava "circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais."
Corta. É 2025, Trump eleito nos EUA novamente, e a palavra "delusion" - que, em português, pode ser traduzida como ilusão, mas também como alucinação e delírio -, anda aparecendo por aí mais do que de costume, do jornalismo político ao streaming e, como não?, nas tendências difundidas pelo TikTok.
Pós-verdade já não dá conta da loucura, da ilusão nem do delírio. Delusional funciona melhor para descrever o atual presidente dos Estados Unidos - ou pelo menos as falas que saem de sua boca. Tudo bem que ele até cumpre promessas de campanha - taí o tarifaço provocando convulsões na economia mundial para comprovar. Mas a anexação da Groenlândia ou a retomada do controle do Canal do Panamá não parecem promessas muito razoáveis. Ou parecem? Ainda menos razoável que isso, como notou a articulista do New York Times Michelle Goldberg no início de abril, é o fato de o povo americano - inclusive a turma de Wall Street - ter "deluded themselves", ou "se iludido", sobre o presidente norte-americano. Mas trago mais exemplos.
Em janeiro, uma chamada para matéria do britânico The Guardian era "Estamos assistindo a uma ilusão (delusion) em massa acontecer"; em outra, Jamelle Bouie, do The New York Times, mandou: "Se tudo isso parece delirante (delusional), é porque é". Em meados de fevereiro, John Crace, colunista do mesmo jornal, escreveu "Trump se supera com suas últimas fantasias delirantes (delusional fantasies)".
Uma tendência às vezes nasce justamente da conexão entre fatos que parecem bastante distantes. E, de Trump, vamos às comunidades de fãs de K-pop, que, lá por 2010, criaram a expressão "delulu" para se referir a pessoas em uma relação unilateral com celebridades que gostariam de conhecer. Fãs delulu, fofamente (e totalmente) delirantes.
E em 2023, logo ali, no TikTok, o que nasceu no nicho coreano viralizou - e hoje são mais de 240 milhões de posts com a hashtag #delulu. Na prática, os delulus ocidentais pregam a romantização da própria vida, se abastecendo de pensamentos positivos para atrair aquilo que desejam, com pouca ou nenhuma dose de ação.
Nas palavras deles: "acredite que já aconteceu" ou o famoso "fake it till you make it" (finja até conseguir), termo bastante conhecido entre fundadores de startups do Vale do Silício - vale lembrar que Elizabeth Holmes, a fundadora da startup Theranos, não só acreditou demais no produto que venderia (uma máquina que faria centenas de exames a partir de uma única gota de sangue) como convenceu investidores de peso a entrarem na sua. Ela acabou presa por quatro acusações de fraude eletrônica e conspiração para cometer fraude eletrônica.
Quando um dos episódios da série-fenômeno entre cineastas The Studio foi liberado, lá estava nosso termo mais uma vez: "You are totally delulu". Aliás, se quisermos abrasileirar a ideia na ficção nacional, Maria de Fátima, a vilã de "Vale Tudo", é delulu de carteirinha. A personagem, interpretada por Bella Campos no remake da novela, já tem até perfis nas redes sociais para comprovar sua skin rica.
Passeando no mesmo terreno, trocando apenas as letras, sabe qual foi eleita a palavra do ano de 2024 pelo Dicionário Cambridge? Manifest. Veja só a explicação da publicação: "usar métodos como visualização e afirmação para ajudá-lo a imaginar a realização de algo que você deseja, na crença de que fazer isso tornará mais provável que aconteça." Uma visão mais otimista do que o delírio delulu, mas, ainda assim, no campo do "acredite se quiser".
Política, TikTok, K-pop, séries de streaming: estamos vendo um novo momento nascer. Algoritmos bastante treinados te entregam apenas o conteúdo que você quer ver. Caos em grupos de mensagens e discussões em áreas de comentários de redes sociais reforçam rupturas em um processo de polarização que nos isola cada vez mais daquilo com o que não concordamos. Somos inundados por opiniões iguais às nossas e ficamos mais confortáveis coladinhos a elas. Estamos criando jovens com enormes dificuldades de se frustrarem - claro, afinal, desde que nascem, tudo o que não gostam, passam para cima no feed, até que apareça novamente algo que gostem. E acreditem. E queiram engajar e compartilhar.
Acreditamos no que quisermos, afinal, podemos provar que é verdade. Mesmo que a prova seja um vídeo de deep fake criado por uma inteligência artificial e que chegue até mim na tela do meu celular.
Ou estou delirando?
41 comentários
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Israel Ribeiro
Metade do Brasil delira na inacreditável onda Bozo, essa matéria se adapta plenamente ao delírio de uma extrema direita a protagonizar os espetáculos mais bizarros e inacreditável de todos os tempos
Johnny Gonçalves
Ótimo texto. Acrescento uma reflexão minha: a ilusão talvez seja algo intrínseco à natureza humana, algo até mesmo anterior a esse delírio contemporâneo, mas tornou-se monstruosa depois que os algoritmos surgiram e abandonaram o campo dos sonhos, passando a fustigar as nossas entranhas.
Solange Beneducci
Parabéns pelo texto Maria. Não vai ser difícil comprovar essa triste realidade, aqui mesmo nos comentários, todos afirmarão que é a turma do lado de lá que é a iludida, delirante. O “eu” nunca delira, só fala a verdade, e claro, pode provar.