Mario Caldato, do 'Sabotage' ao samba: 'música me trouxe de volta ao país'

Um dos produtores brasileiros mais celebrados dentro e fora do país, Mario Caldato Jr. sabe que é visto como um gringo - e não é à toa.

Com o sotaque americano e personalidade um tanto tímida, ele reflete, aos 63 anos: "A música me trouxe de volta pro Brasil de uma maneira muito incrível, que eu não imaginava".

Nascido em São Paulo, Mario se mudou para Los Angeles com a família quando tinha dois anos.

Nos Estados Unidos, ele se tornou um mago na produção e engenharia de som e contribuiu para moldar o som que deu cara ao hip-hop na costa oeste americana.

Ainda garoto, num estúdio improvisado no quarto, produziu rappers como Young MC e Tone Lõc — com este último alcançou o número 1 da Billboard, com o sucesso "Wild Thing".

Mas foi com os Beastie Boys que ele cativou uma longa e frutífera parceria, que foi do clássico "Paul's Boutique" (1989), onde foi engenheiro de som de faixas que inovaram o uso de sample na história, ao disco "Hello Nasty" (1998). Ficou conhecido como Mario C, espécie de quarto elemento do grupo americano de hip-hop. Juntos, gravaram mais um grande sucesso dos anos 1990, "Sabotage".

No Brasil, trabalhou com Nação Zumbi, Planet Hemp, Vanessa da Mata e Seu Jorge. E fez história: é com sua produção que Marcelo D2 sacudiu o mundo do rap com "A Procura da Batida Perfeita", e com o disco de samba de Marisa Monte, "Universo ao Meu Redor", ganhou o primeiro Grammy Latino.

Mario Caldato Jr. com o álbum "Jardineiros", que deu ao Planet Hemp o primeiro Grammy Latino
Mario Caldato Jr. com o álbum "Jardineiros", que deu ao Planet Hemp o primeiro Grammy Latino Imagem: Canal UOL

Esse encontro com a música brasileira só aconteceu nos anos 1990, quando ele tinha quase 40 anos e havia voltado ao Brasil pela primeira vez, acompanhando os Beastie Boys.

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"Demorou, mas chegou", ele observa. "Eu nem sabia que existia outra versão para 'Mas que Nada'", diz, citando o hino de Jorge Ben Jor, que ele guardou como única referência brasileira na infância, quando ouviu, já nos Estados Unidos, Sergio Mendes invadir as rádios com sua versão.

"Graças a ele, entrei nessa coisa de música", diz. "E queria fazer música pop."

Leia os principais trechos da entrevista:

Um garoto americano

Nossos vizinhos, acho que no Natal ou aniversário de alguém, trouxeram um disco do Sergio Mendes, "Sergio Mendes & Brazil 66". Eu tinha cinco anos. Esse foi o primeiro disco que me pegou e graças a ele eu entrei nessa coisa de música.

Cresci ouvindo muita música americana, muito soul, Stevie Wonder, Beatles, Rolling Stones... Todas essas músicas fantásticas faziam parte das minhas noites antes de dormir. Mais tarde, comecei a tocar em uma banda e eu era o único que tinha um teclado. Todo mundo tinha guitarra, baixo e bateria — ninguém tinha teclado.

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Naquela época, a gente também montava nosso próprio equipamento, porque não tínhamos dinheiro para comprar amplificadores. Pegávamos um aparelho Hi-Fi velho, fazíamos adaptações, colocávamos um adaptador e conectávamos as guitarras e baixos nele. Isso nos ensinou muito sobre a parte técnica.

Mario Caldato com Tone-Lõc em 1988
Mario Caldato com Tone-Lõc em 1988 Imagem: Acervo pessoal

O rolê do hip-hop

Um DJ me chamou dizendo que queria produzir um álbum. Matt Dyke era um DJ que tocava de tudo, e isso foi por volta de 1985 ou 1986, quando o hip-hop já estava no ar, explodindo. Ele tinha vários clubes, mas o que eu conhecia se chamava Power Tools. Esse lugar era fabuloso.

Uma noite, estávamos do lado de fora do clube ouvindo o som. Entramos e, logo na segunda música, o som, de repente, apagou. No palco, três caras brancos e um cara preto, o DJ. A gente não sabia quem eram — não eram super famosos na época. Cheguei para um deles e disse: "Cara, você não tem alguém que mexe com som?" Ele respondeu: "Não, você entende de som?" Falei: "Sou um 'sound man'[homem do som]". Então ele me chamou: "Vem aqui, dá uma olhada no que está acontecendo".

Depois de uns cinco ou seis minutos, consegui fazer o som voltar. O DJ estava em pânico — imagina mil pessoas no clube sem música no pico da festa, por volta de 1h da manhã! Depois disso, ficamos amigos. Descobrimos que tínhamos muitos gostos musicais em comum.

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Um dia, ele comentou: "Cara, eu queria muito fazer meu disco, produzir música". Foi quando entrou em cena o parceiro dele, Mike Ross, que também era DJ. Mike estava mais focado em encontrar rappers. Um dos primeiros que eles trouxeram foi o Tone Lõc. Quando meu amigo ouviu a fita do cara, adorou. Dissemos: "Vamos chamar esse cara, dizer que temos um selo e convencê-lo a gravar". Levamos o Tone Lõc para o nosso pequeno estúdio e mostramos uma base que já tínhamos pronta.

Numa noite no clube, o DJ tocou a música original que tínhamos sampleado, que era da Chaka Khan. Depois, colocou a nossa versão. Todo mundo começou a dançar. Eu fiquei impressionado: "Caraca, a galera está dançando!" O DJ estava eufórico, pulando de alegria. Pensei: "Ninguém sabe que essa música é nossa".

Aquele em que salvei os Beastie Boys (sem saber que eram os Beastie Boys)

A partir daí, criamos uma verdadeira fábrica de música e começamos a chamar outros rappers. O Tone Lõc foi o primeiro, seguido pelo Young MC. O segundo disco começou a tocar em uma rádio local, subiu para o número quatro e vendeu 10 mil cópias só em Los Angeles. Depois veio o lançamento de "Wild Thing", que chegou ao número um na Billboard em uma semana.

O sonho do Mike Dyke era produzir os Beastie Boys. Um dia, em uma festa, ele encontrou o Ad-Rock, integrante da banda, e aproveitou para falar: "Quero te mostrar uma base em que estamos trabalhando". Dois dias depois, os Beastie Boys apareceram no nosso estúdio — os três. Foi só então que nos demos conta: naquela noite em que eu fui falar sobre o som no clube, eram eles que estavam no palco tocando!

Mario Caldato com os Beastie Boys: longa colaboração o fez ser conhecido como quarto membro do grupo
Mario Caldato com os Beastie Boys: longa colaboração o fez ser conhecido como quarto membro do grupo Imagem: Acervo Pessoal
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Máquina de sample

O conceito do "Paul's Boutique (1989)" era simples: os Dust Brothers [produtores do álbum] faziam a música, e os Beastie Boys cuidavam do resto. Nós nos concentrávamos nas nossas partes separadamente e nos reuníamos à noite para adicionar os vocais e finalizar as faixas. Foram horas e horas cortando samples. Os Dust Brothers tinham uma tecnologia mais avançada na época e sabiam como sincronizar os elementos de forma eficiente.

No passado, com as drum machines, era tudo mais manual: você deixava a batida rodar, mas sincronizar algo novamente era complicado. Com essa nova tecnologia, o processo ficou mais sofisticado. Podíamos voltar à música e adicionar novos elementos com facilidade. "Aqui tem uma guitarrinha legal, ali tem uma percussão interessante, e nesse outro trecho tem uma voz bacana." Íamos sampleando tudo isso e construindo as músicas.

Quando ouvíamos o Public Enemy, percebíamos como eles tinham um som complexo e único. Todo mundo se perguntava: "Como é que o som deles é tão diferente?" Eles usavam três ou quatro baterias tocando ao mesmo tempo, algo que parecia revolucionário.

Os Dust Brothers aprenderam muito ouvindo esses discos e levaram o conceito ainda mais longe. Misturaram rock, alternativo, folk e até elementos que ninguém imaginava combinar. Colocamos Beatles junto com Curtis Mayfield e outras ideias malucas. Depois do "Paul's Boutique", decidimos mudar novamente. Pensamos: "Esse caminho não está certo. Vamos tentar outra abordagem para o próximo disco. Desta vez, vamos montar o nosso próprio estúdio".

Criamos o G-Son, um espaço onde trabalhamos por dois anos e meio, quase três, para produzir o "Check Your Head" [terceiro álbum dos BB, de 1992] com calma. Ter essa liberdade no nosso próprio espaço nos deu confiança para experimentar. Esse álbum incorporou jam sessions, rock, punk e, finalmente, rap. Após a turnê do "Check Your Head" já tínhamos ideias para o próximo disco, que seria uma continuação: o "Ill Communication" (1994). Gravamos todas as bases instrumentais, incluindo a faixa que viria a se tornar "Sabotage".

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Adivinha doutor, quem tá de volta na praça?

[Mario produziu o segundo álbum do Planet Hemp, "Os Cães Ladram Mas A Caravana Não Pára" (1997) e seu trabalho mais recente, "Jardineiros" (2022) - que rendeu o primeiro Grammy Latino para a banda em duas categorias: "Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa" e "Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa".]

A banda que abriu o show dos Beasties Boys no Rio [em sua primeira passagem pelo Brasil em abril de 1995] foi o Planet Hemp. Um amigo brasileiro me disse: "O DJ Zegon e o Marcelo, o vocalista da banda, querem falar com você". Eles vieram me procurar. "Você é o Mário, o gringo? Será que pode produzir nosso próximo disco?" Respondi: "Pô, legal! Quero ouvir o som de vocês". Quando escutei, percebi que era uma mistura de Beastie Boys com Cypress Hill, uma combinação de rap e rock.

Depois disso, fui a uma loja de discos com eles. Me disseram: "Você precisa disso, disso e disso". Peguei tudo de Jorge Ben que consegui encontrar. Foi minha grande descoberta quando vim ao Brasil. Eu nem sabia que existia uma versão original de "Mas Que Nada''. Naquela época, esses vinis eram difíceis de achar.

Com o Marcelo, conheci o universo dele de rap e samba, coisas que eu não conhecia.

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Imagem: Canal UOL
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Um samba com Marisa Monte

A Marisa, querida, me chamou e disse: "Quero te convidar para trabalhar em um disco. Vai ao show". Achei legal. Os discos dela são mais MPB, mas aí ela veio com uma proposta diferente: "Vou fazer um disco de samba".

"Samba?", pensei. "Mas eu nunca gravei samba. Eu trabalho com samples, essas coisas. Nunca fiz samba". Então ela explicou: "Vai ser um disco de sambas, mas eu quero algo diferente. Não é samba tradicional, ok? Quero que você faça a produção do jeito que você faz, mixando, colocando efeitos".

Começamos a trabalhar juntos e foi tudo muito natural. Gravávamos voz e violão como guia, e, em seguida, começávamos a adicionar efeitos e experimentar, do mesmo jeito que eu fazia nos outros projetos.

Esse disco ["Universo ao Meu Redor", de 2006] foi especial. Foi nele que ganhei meu primeiro Grammy com a Marisa.

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