Ilhados com a Sogra entrega conflitos familiares dignos das boas novelas

Reality show bom é aquele que entretém e, de alguma forma (mesmo que indiretamente), levanta alguma discussão. Há anos, o BBB consegue debater temas relevantes e retratar comportamentos da sociedade brasileira como nenhum outro produto cultural é capaz. Mas, ao longo de seus 25 anos, o programa, por conta de sua premissa principal, nunca conseguiu aprofundar questões relacionados a conflitos e dinâmicas familiares mesmo quando confinou Ayrton e Ana Clara Lima, pai e filha, na 18° edição.
Essa lacuna do BBB é gloriosamente preenchida pelo Ilhados com a Sogra, da Netflix, que reúne seis trios formados por sogras, filhos/filhas e noras/genros para discutirem a relação e lavarem a roupa suja numa praia paradisíaca. Comandado com muita desenvoltura e carisma pela atriz Fernanda Souza, a grande sacada de Ilhados com a Sogra é deixar os participantes em uma situação perene de desconforto e em contato direto com parentes próximos, o que impede que eles encarnem personagens como, inevitavelmente, costuma ocorrer em outros reality shows de confinamento.
Assistir aos episódios de Ilhados com a Sogra é como espiar a intimidade de diferentes famílias. Permeadas por muita emoção, as conversas e as brigas entre as sogras, seus filhos, genros e noras revelam conflitos familiares dignos das melhores novelas. Não é exagero afirmar que, em alguns momentos, os diálogos atingem uma profundidade que parece que estamos acompanhando cenas de tramas de Manoel Carlos, autor que se consagrou por criar tramas realistas com personagens dúbios.

Se por um lado é divertido ver os conflitos super identificáveis entre genros/noras e sogras, por outro lado, é impossível assistir aos episódios e não se questionar qual o papel dos filhos na ressignificação da vida dessas mães que transformaram sua prole no centro de suas vidas e se dedicaram tão intensamente para criá-los a ponto de desenvolverem uma relação de quase dependência.
Essa camada mais reflexiva só é possível por conta do casting muito bem escolhido e das dinâmicas que fazem com que os personagens desse reality show não sejam colocados em caixinhas e mostrem diversas facetas do ser humano. É muito bom e divertido ver aquelas senhoras desempenhando papeis e dando opiniões que não se encaixam nos estereótipos sobre a terceira idade que foram perpetuados durante tanto tempo nas obras de ficção. Os personagens de llhados com a Sogra são complexos, possuem camadas, algo que temos dificuldade de encontrar nas obras de ficção produzidas para a TV aberta brasileira.
A riqueza do material humano de llhados com a Sogra só aparece na tela por causa do formato, que faz os familiares se confrontarem o tempo todo. Nesse aspecto, é necessário destacar a habilidade da psicóloga Shenia Karlsson que, com muita sensibilidade, media os encontros das famílias e faz os participantes abrirem o coração e trazerem à tona mágoas e ressentimentos. Essas revelações, em geral, se desdobram em novos desentendimentos, que permitem que o programa tenha uma narrativa ágil e sempre pautada pela emoção. Shenia consegue colocar "fogo no parquinho" sem forçar a barra e os conflitos são sempre muito orgânicos e nunca descambam para a baixaria.
Outra qualidade de Ilhados com a Sogra é o modo que eles abarcam a diversidade e tocam em assuntos delicados. Na primeira temporada, havia um casal formado por homens. Nesta edição, o programa trouxe um homem trans entre os competidores e ainda abordou o preconceito contra asiáticos e a decisão de um jovem casal de não ter filhos. Tudo foi feito com muito respeito e sem ser panfletário.
Desenvolvido por profissionais brasileiros, Ilhados com a Sogra prova que temos capacidade e vocação de criar nossos próprios formatos e não precisamos depender da adaptação de realities gringos, um mal que ainda assola nossa indústria televisiva.

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