Flavia Guerra

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Opinião

Forte, delicado: por que 'Sol de Inverno' é marco do cinema japonês recente

"Sol de Inverno" é desses filmes pequenos, feitos com orçamento enxuto, um roteiro simples, mas sofisticado, e com o trunfo de ter uma direção cuidadosa e afetuosa, que dá espaço para que seus atores criem em cena e para que a trama flua naturalmente.

Pode-se resumir a trama afirmando que "Sol de Inverno" acompanha o menino Takuya (Keitatsu Koshiyama) desde o primeiro dia de inverno na pequena ilha onde mora, do Norte do Japão, até o início da primavera, período único em sua vida, em que ele vai se apaixonar não só pela garota Sakura (Kiara Takanashi) como pela patinação no gelo, esporte que ela pratica com destreza e que ele começa a praticar graças ao olhar atento do professor Arakawa (Sosuke Ikematsu).

Na verdade, o diretor e roteirista Hiroshi Okuyama não deixa explícito (assim como nada é explícito em "Sol de Inverno") se Takuya já gostava da patinação ou se tomou gosto ao observar Sakura na pista, encantadora e precisa, fazendo de tudo para, na verdade, chamar atenção do professor.

O garoto, que não leva muito jeito para ser goleiro do time de hockey (esporte que sua família enxerga como mais adequado a um garoto), encontra seu lugar quando Arakawa decide dar a ele seus patins antigos, de quando ele foi um campeão do esporte, e formar uma dupla do garoto com Sakura para competir em um campeonato local.

No entanto, mais que a sinopse ou a descrição da trama, há uma cena que traz a essência de "Sol de Inverno": Takuya, Sakura e Arakawa, depois de um longo dia de treinos ao ar livre, depois de patinar em um pequeno lago congelado, sentam-se à beira do lago e contemplam a paisagem sob o sol que aquece seus rostos e ilumina a região nevada.

Há uma eternidade contida naquele momento. Há um sentimento comum entre eles, que reverbera no público, de que se trata de um momento único da vida dos três, simples, mas essencial para a formação das memórias e do caráter, principalmente, dos jovens.

São cenas assim que fazem de "Sol de Inverno" um filme especial, e de Hiroshi Okuyama um cineasta para se prestar atenção. Aos 28 anos, ele assina seu segundo longa (o primeiro foi "Jesus", de 2018), que também escreveu e assina a fotografia.

A obra chega aos cinemas brasileiros como primeiro filme da distribuidora Michiko, junção dos nomes dos amigos e, agora, sócios Chico Fireman e Michel Simões, dois apaixonados e entendedores de cinema, que assistiram ao longa no Festival de Cannes, em maio de 2024, e decidiram apostar e trazer o longa para o público brasileiro.

Seguindo uma tradição do cinema japonês que valoriza as coisas simples da vida, que jamais são simplórias, Hiroshi constrói com "Sol de Inverno" uma história que trata de outro ponto forte na sociedade nipônica, mas que é também tema de toda sociedade contemporânea: a dificuldade de se expressar sentimentos.

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O filme fala de sentimentos que não conseguem se tornar palavras. A nova geração também passa por isso. Hoje em dia, com as redes sociais, todos têm poder de voz, todos podem falar livremente. Mas ainda há pessoas que carregam o silêncio e não conseguem sair desse silêncio. O professor é um personagem que gostaria de dar ouvidos para quem não consegue ter voz. Sosuke Ikematsu, em entrevista exclusiva para coluna.

Arakawa, o professor, também encarna uma geração intermediária: entre o Japão mais conservador e uma nova geração que está rompendo alguns tabus. Inspirado na canção "Boku no ohisama", da banda japonesa de rock Humbert Humbert, que significa "meu sol" (daí o "My Sunshine", título em inglês do filme), o cineasta trouxe elementos de sua adolescência, pois praticava patinação, mas faz questão de frisar que não se trata de um filme biográfico.

"O que está no filme é fruto do trabalho da criação do roteiro. Não é sobre mim ou minha história. Gostaria que cada um percebesse de sua forma", comenta Hiroshi Okuyama, em entrevista para coluna.

O diretor observa que, apesar das questões de gênero, homofobia, e preconceito surjam naturalmente ao longo da história, "Sol de Inverno" não é um filme "temático" ou político.

De fato. Herdeiro do cinema de diretores como Hirokazu Kore-eda, Naomi Kawase, Kiyoshi Kurosawa, o mestre Yasujiro Ozu, o jovem Okuyama, que foi um dos destaques da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2024, carrega a tradição de contar histórias que ressaltam o há de extraordinário em um cotidiano aparentemente ordinário.

É um cinema sempre atento às pequenas-grandes mudanças e contradições que se escondem nos silêncios, nos olhares trocados, no que não é dito diretamente.

O passar do inverno, do tempo que embrulha tudo, traz a perda do olhar inocente de Sakura para o professor, por quem ela nutre um amor juvenil platônico. Traz também o amadurecimento de Takuya e traz o entendimento que o ciclo de Arakawa na ilha chegou ao fim.

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É o tempo da natureza, o tempo do inverno chegar, dominar tudo e, por fim, ceder lugar ao sol de primavera, que dita os acontecimentos do filme. O cinema oriental, mas sobretudo o japonês, tem uma relação íntima com a natureza e seus ciclos, que marcam o passar do tempo. Naomi Kawase é referência contemporânea com obras como a "Floresta dos Lamentos", "O Segredo das Águas", "Vision", entre outros.

Kore-Eda filma as famílias disfuncionais, mas possíveis e que se amam à sua maneira em filmes como "Assunto de Família", "Pais e Filhos" e "Broker - Uma nova Chance". Mas Ozu foi mestre dos tempos-mortos e da natureza que não surge tão óbvia, como é em "Fim de Verão", mas que permeia tudo, até quando ela parece ausente em "Era Uma Vez em Tóquio".

A relação com a natureza e o tempo inverno de maturação de cada personagem em "Sol de Inverno" faz do filme mais um belo exemplo do cinema de um país que não cansa de nos surpreender. Múltiplo talento, pois também monta e faz música, Hiroshi Okuyama merece atenção e ainda vai nos revelar outras belas histórias.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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