A relação entre irmãs, um dos mais complexos e delicados vínculos humanos
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Hoje me atrevo a escrever do que não entendo, do que jamais chegarei a entender. Sou testemunha ocular, dentro da minha própria casa, da mais delicada, complexa e entranhada das conexões humanas: a relação entre minhas filhas, a relação entre duas irmãs. Observo com atenção seus movimentos, suas conversas, suas brincadeiras. Leio um tanto a esmo uma literatura a respeito, leio Lisa Ginzburg, leio Winnicott. Algo me mantém perdido e intrigado diante desse vínculo que nasceu de mim e de minha companheira, e que no entanto nos sobrepassa, existe muito além de nós, persistirá quando tivermos partido. Há algo que não decifro e não sei nem mesmo interrogar, alguma pergunta misteriosa que conduz o meu olhar mas nunca se nomeia.
Quando uma nasceu, a outra era carinho e impaciência. Aos dois anos e pouco, Tulipa não pareceu viver a ambivalência que todo filho mais velho experimenta ante a chegada de um bebê. Foi acolhedora e atenciosa desde o primeiro dia, foi compreensiva com os pais confusos e afoitos a desviarem atenções que haviam sido apenas dela. Em sua única declaração mais insatisfeita, descobrimos que esperava sua vez. Frustrava-se em ter uma irmã tão sonolenta, encerrada em seu mundo limitado, interessada só em mamar e dormir, incapaz de distinguir onde acabava a mãe e onde começava ela. Quando é que ela vai querer brincar comigo?, perguntou Tutu mais de uma vez, desiludida com a menina que a olhava sem a ver.
Com o tempo, porém, a pequena Penélope passou a sentir na presença da irmã um magnetismo impressionante. Eram em resposta aos estímulos dela seus entusiasmos mais evidentes, seus risos sonoros, seus abraços efusivos. Entre as duas se criava uma sintonia natural que a um adulto seria impossível, cioso como está de seu próprio papel. Tão cedo nos tornamos, os outros, espectadores daquela relação tão viva, por vezes encantados com seu dinamismo, por vezes preocupados com seus excessos. Quando começou a falar, não era incomum que Penélope respondesse Tutu quando perguntavam quem ela era. Quando se pôs a delinear números e letras, TULIPA foi a primeira palavra que ela escreveu, antes de seu próprio nome.
Uma criança sabe brincar com outra muito melhor do que qualquer adulto, isso já se conhece bem. "Se os adultos brincam com uma criança, a loucura natural da brincadeira infantil torna-se demasiado evidente", explica Winnicott. A ironia perceptível dos adultos tolhe um pouco da imaginação, e seu apego à ordem regula demais o que deveria ser livre. Acompanho as meninas pela casa e aprendo como se brinca, aprendo a tomar caminhos imprevistos que rompem a lógica e a coerência. Aprendo eu com Tulipa, aprendemos os dois com Penélope, muito mais dada à inconsequência, à impulsividade, a essas qualidades que Winnicott incensa na brincadeira infantil. Tulipa talvez se visse contida demais, polida demais, se não fosse o caos criativo que emana da irmã.
Às vezes sinto que uma chora pelas duas, que o protesto de uma vale também para aquela que se mantém tranquila. Às vezes, porém, os protestos se dão entre elas e explodem em nossos ouvidos, e vão se tornando conflitos extremos que tentamos mediar sem dispor de recursos suficientes. Protegemos uma da outra, mas logo elas querem se desvencilhar de seus mediadores e voltar ao contato direto, bem mais intenso, talvez mais verdadeiro. Às vezes, toda briga ou toda brincadeira cessa por um momento e elas se entregam a um diálogo sereno e franco. Eu olho para elas e vejo as irmãs que um dia serão, irmãs que se encontram no meio da tarde para um café carregado de confissões e trivialidades da vida.
Que Tulipa tenha começado a ler, que tenha passado a dedicar horas à leitura com surpreendente avidez, foi considerado pela irmã como uma espécie de traição. Talvez de fato ela esteja se protegendo nos livros de toda a intensidade, talvez, como nós, também precise descansar das brincadeiras desregradas que a irmã conduz com energia. O caso é que Penélope ressente essa ausência psíquica, e mais ainda começou a ressentir as ocasiões de ausência física. Há poucos dias, quando uma foi convidada à casa de uma amiga, a outra chorou copiosamente, um pouco pela injustiça de não receber convite semelhante, um pouco por perder sua companhia costumeira. Nessas horas percebo quanto nos tornamos insuficientes, pai e mãe, como em alguma medida já deixamos de ser o centro de seus mundos.
Quando contei às duas, há poucas horas, que escreveria um texto sobre a relação entre elas, quando perguntei se tinham alguma coisa a dizer a respeito, Penélope apenas deu um abraço na irmã e continuou a sorrir, querendo já passar a outros assuntos. Tulipa sim se dispôs a dissertar a respeito, muito melhor do que fui capaz de fazer aqui, mas começou seu comentário com uma ressalva imprescindível: Esquece, pai, não vai caber, é coisa grande demais para um texto desse tipo.
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