Para que servem as histórias infantis?
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Entre as ásperas exigências da paternidade, há aquelas que se convertem nos mais suaves prazeres. Pôr as filhas para dormir lendo um, dois, três livros, sentindo a mão de uma sobre meu peito, a voz da outra arriscando suas próprias sílabas sobre meu ombro, tem sido entre tais prazeres o mais evidente. Nessa leitura tenho gostado de me alongar, buscando para isso um tom cômico ou dramático, enfatizando alguma passagem para que não durmam ainda. Nessa leitura tem havido para mim distração e leveza, e não aquilo que por vezes contamina as leituras adultas, o juízo da crítica, o vício do pensamento. Deitado entre elas, nas mãos os seus livros infantis, ler se faz um ato agradável e singelo, livre de vaidades intelectuais prescindíveis.
E, no entanto, é fato inconteste para quem quer que leia para crianças que nem todo livro infantil é certeiro. Desde os primeiros tempos das minhas filhas prevalece algum estranhamento. Por que chegam a ser tão desconexos, insólitos, bizarros, descontínuos aqueles livros? Por que abdicam tanto da narrativa, às vezes até da palavra, optando por uma esqualidez textual que afeta todo o ritmo da leitura? Ou então, quando de fato se processam histórias contadas em frases sucessivas, por que terminam tantas vezes em noções moralizantes, na defesa de uma virtude rasteira, numa pedagogia óbvia, imediata, besta?
Chego então a uma interrogação que tem tomado meu pensamento nos últimos dias: para que servem as histórias infantis? Leio em Walter Benjamin que, lá nos primórdios do livro infantil, fruto menor do Iluminismo, a proposta era também edificante e moralista, algo próxima do catecismo até. E que justamente por isso chegaram a ser um fiasco aqueles livros, sem uma acolhida entusiasmada de ninguém. Se sobreviveram, foi pela graça vivaz de suas ilustrações, diz Benjamin, já que aos artistas não se exigia que servissem ao didatismo, e assim eles puderam dotar de algum encanto livros que teriam sido apenas enfadonhos e hostis.
A literatura infantil só encontrou seu caminho e se firmou na cultura quando pôde se livrar dessa rigidez de partida, dessa moral que tem voltado a tomar de assalto certos livros recentes. Não há novidade em dizer que foram os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, com sua compilação de histórias tradicionais da língua alemã, os que realizaram tal passagem do fiasco ao encantamento. Há ali, desde 1812, na primeira antologia que escreveram com palavras próprias a partir das alheias, grande limpidez, direção e transparência em seu modo de contar histórias para crianças. Há ali o que elas desejam, ou o que Benjamin diz que elas desejam: "explicações claras e inteligíveis, mas não infantis" sobre as coisas sérias do mundo. Histórias que as crianças estão sim interessadas em ouvir, desde que contadas de forma honesta, sem que o mundo se renda ao inautêntico, sem que se torne uma versão edulcorada e vazia de si mesmo.
Numa conferência da tradutora e germanista Helena Cortés Gabaudan, descubro que foram os próprios Grimm, ou apenas um deles, Wilhelm, quem começou o processo estranho e talvez equivocado de ajustar as histórias primeiras, de torná-las mais palatáveis a um público sensível, mais morais e pudicas também. Por sentir um amor exagerado pela mãe, e por não querer ofendê-la em contos que tantas vezes retratavam mães brutas e cruéis, Wilhelm foi quem começou a trocá-las por madrastas, figuras tidas por distantes e desprovidas de um afeto real. Criou assim o terror pela madrasta que hoje se critica, e ao mesmo tempo eliminou algo da complexidade original, a intrincada mistura de amor e ódio e desespero em que consistem as relações entre pais e filhos.
Era a mãe de "Branca de Neve" quem se corroía de raiva diante de sua beleza, não sua madrasta. A história não fala de uma mulher poderosa e malvada que surge para destruir uma família bondosa, como quer a Disney, e sim do desequilíbrio que pode acometer uma mãe, uma mulher comum, quando sente que está perdendo a juventude e a beleza, e sente que já não será apreciada como antes, que a velhice lhe será austera. Fala do horror que toma uma família quando marcada por afetos duros, raivas, ciúmes. Fala do medo que sentem as crianças de que os pais as odeiem. No fim da história original, há um detalhe expressivo que se esquece em versões recentes, transformadas até o limite: a mãe vai ao casamento da filha e passa a noite a dançar com seus sapatos vermelhos, sapatos ferventes que são a própria imagem da inveja, ardendo ainda em vida em seu inferno.
Era a mãe de Hansel e Gretel, aqui insensatamente convertidos em "João e Maria", quem queria se livrar deles largando-os num canto distante da floresta. O conto fala de miséria, de escassez, de fome, e por isso o pão está ali presente por toda parte - é feita de pão a casa original da bruxa que eles encontram, e não de chocolate. O conto trata do terror infantil de que os pais já não encontrem sustento e precisem se desfazer das crianças, até comê-las. Termina numa vingança emancipatória: as crianças matam a bruxa que é ainda uma imagem da mãe (a mãe está morta quando elas retornam), e agora se tornam responsáveis por si próprias, mais eficazes que seus progenitores. O próprio Wilhelm cuidou de incluir depois umas passagens desnecessárias, um pato que os ajuda a voltar para casa, demonstrando o mal que por vezes ocorre numa reescrita: a perda de vista do essencial.
Enfim, antes que eu mesmo perca de vista o essencial, volto à interrogação: para que servem afinal as histórias infantis? Servem, tantas vezes, para dotar de palavra um pesadelo, para nomear um medo, e assim quem sabe nos ajudar a conviver com ele, a apaziguá-lo. Não devíamos querer que as histórias nos ensinem, ou ensinem às crianças, uma virtude fácil, uma diplomacia da índole. Até porque não é assim que as crianças assimilam o mundo, nada se introjeta dessa maneira imediata, diz Benjamin. O que queremos, ou ao menos o que eu quero nas noites de leitura farta com as minhas filhas, é que entrem em contato com o que há de obscuro e ominoso em si mesmas, e com o que há de alegre e cômico em si mesmas, para que melhor se conheçam. Para que possam levar à vida, algum dia, sem nenhuma pressa, aquilo que os livros lhes ensinaram sem jamais precisar dizê-lo.
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