Receita para uma crônica de Carnaval
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Uma crônica de Carnaval deve começar sóbria, taciturna, fleumática, como quem toma as ruas de manhã ainda sem ímpeto de se embriagar. Pode professar até alguma antipatia pela perdição que se anuncia, alguma impaciência com a euforia de toda a gente, com a iminente explosão do vozerio, da histeria, do riso falso e fácil demais.
Uma crônica de Carnaval tem que se fazer nostálgica, por tradição, deve sempre afirmar que a boa alegria ficou décadas ou séculos ou milênios atrás. Talvez até incensar os velhos tempos de saturnália, ou as hordas medievais atravessando feudos com seus novos cantos em suas novas línguas, ou o entrudo que aqui entrou quando tudo ainda era mato, vestindo os nus para logo despi-los. Tem que trazer essa erudição um pouco imprecisa, como quem sabe o que diz, mas está apressado demais para explicar.
Uma crônica de Carnaval deve prestar homenagem às velhas crônicas de Carnaval, todas elas saudosistas e de humor instável. Deve proclamar, com Machado de Assis em 1874, que "O Carnaval morreu, viva a Quaresma!", que esse jovem que parecia "tão cheio de vida, tão lépido, tão brilhante", agora está moribundo e só padece. Deve abraçar Lima Barreto, em 1920, e suspirar com ele pelo aborrecimento que o Carnaval lhe causa. Pode lamentar, com Rachel de Queiroz em 1949, que "dantes Carnaval era tempo de desabafo", que hoje ninguém brinca "como brincava outrora", que agora o "Carnaval morreu, se acabou". Pode convocar também Rubem Braga, o de 1952, e afirmar com melancolia e graça que, neste país, "nem o Carnaval se pode levar a sério".
Uma crônica de Carnaval deve então seguir pelas ruas uns tantos passos até deixar toda essa falação para trás. Deve apreciar o azulão do céu, contente que este ano não paire sobre a cidade nenhuma ameaça de tempestade. Deve se animar a tomar o primeiro trago e com ele aceitar que seu corpo de crônica vá se achegando aos outros corpos, sobretudo aos corpos reais de amigos leais, deve com eles se congraçar e celebrar enfim a abertura dos trabalhos de folga.
É mais ou menos por essa altura que uma crônica de Carnaval vai perdendo a coerência, a coesão, a forma, vai assumindo um outro tom que seu início não anunciava. Agora a crônica está descontraída, alegre, fagueira, desajeitada, nem sinal de sua melancolia ou de seu pessimismo emprestado, a crônica agora festeja. Esse é o exato ponto em que lhe convém tomar qualquer coisa forte, sacar do bolso seu cantil de cachaça e sentir como a linguagem vai ganhando contornos improváveis, como se põe a falar de alalaôs e ziriguiduns e balangandãs, e de repente já se vê entoando alto, entre as vozes da gente, ô abre alas, que eu quero passar, eu sou da lira, não posso negar.
Aí já não cabe mais à crônica de Carnaval nenhuma atenção maior ao sentido, à sintaxe, à unidade vocabular, as próprias palavras estão bêbedas e começam a despirocar. Adeus, palavra!, a crônica exclama porque já se permite exclamar. Venha a marcha, o samba, a dança, o som, o porre, o suor, o beijo, o agarrão, o sexo, a orgia, o torpor, a graça, o sono.
Dá-se na crônica de Carnaval, por fim, um ligeiro lapso temporal, e ela desperta mais tarde ainda um pouco embriagada, temendo a iminência da ressaca. Mas feliz, sobretudo, feliz porque o Carnaval ainda é jovem e cheio de vida e lépido e brilhante, e porque o povo ainda desabafa como desabafava dantes, e ainda sabe brincar como brincava outrora. E porque o Carnaval não acabou e nem vai acabar, o Carnaval é coisa séria e não há de morrer jamais.
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