Julián Fuks

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Opinião

A urgência de acabar com o abismo entre meninos e meninas

Fez a leitura cuidadosa do espaço, aspirou um litro de ar, escolheu a mesa onde uma menina loira comia sozinha, os cabelos cacheados cobrindo parte de sua cara. Eram ambas novas naquele lugar, ela imaginou que seria o momento exato para inaugurar um diálogo, quem sabe uma amizade. Sentou-se bem na frente da outra, procurou seus olhos, estava prestes a soltar a primeira frase quando a menina se ergueu e empunhou a bandeja ainda cheia, partindo sem olhar para trás. Em casa, Tulipa contou a história com uma tristeza suave, sem grandes pesares, ponderando que a menina não parecia assim tão simpática. Foi sua primeira cena típica de filme adolescente americano.

Dois dias depois voltou aliviada, um sorriso sutil nos lábios. Descobrira um detalhe que mudava a história. A menina cortara os cachos loiros rente ao escalpo, agora se via bem a sua cara, a menina tinha se apresentado ao grupo: seu nome era Vinícius. Tudo se explicava, afinal: era um menino quem a rejeitara no refeitório, era um menino quem se recusara a almoçar na mesma mesa que ela, quem fugira de seu olhar e de sua palavra. Tudo estava em seu lugar, tudo tão previsível e normal, e é fato que até minha companheira e eu nos aliviamos um pouco com o detalhe inusitado.

Só depois veio à consciência o absurdo daquilo, o sem sentido de reinterpretar o ato por uma módica mudança de gênero. Tão grandioso tem se feito o abismo entre meninos e meninas já nessa idade precoce que nem chega mais a causar sobressalto. Desde os primeiros anos de escola das minhas filhas, observo o fenômeno um tanto intrigado. Aos três, aos quatro, aos cinco anos, vão se alinhando pouco a pouco uns de um lado, outras do outro, numa estranha quadrilha que prescinde de todo comando. Entre ambos grupos só gracejos rápidos e superficiais, ou brincadeiras intimadas pelos adultos. Naquele lugar, ao menos, no espaço da escola que devia ser diverso e aberto ao desconhecido, toda profundidade, toda cumplicidade, toda intimidade parecem guardadas para as relações entre meninas e meninas, ou entre meninos e meninos.

Não estou apontando, como é óbvio, nenhuma naturalidade nessa segregação tão evidente. É o contrário: a vontade é de acusar o ponto em que nossa cultura tem falhado, o ponto em que tem se mostrado inócua toda declaração de equilíbrio e igualdade. No microcosmo fundamental da escola, parece, não tem feito a diferença esperada que pais e mães tragam um discurso afiado, que defendam uma indistinção maior entre gêneros, que acusem a mentira dos gostos e das vocações dados de nascença. Tudo isso gira em falso, superado por forças maiores, e não é impossível que estejamos vivendo até um acirramento das diferenças. Para azar dos meninos, talvez, presos a uma cultura de futebol, videogame e pouca coisa mais, com perdão do olhar um pouco afastado e da generalização barata.

É difícil fazer comparações históricas, corre-se sempre o risco da miopia pessoal, de ampliar aos outros uma experiência que só pode ser própria. Mas o caso é que, aos meus três, quatro, cinco anos de idade, por alguma razão indecifrável, na melhor das hipóteses por uma razão aleatória, as minhas maiores amigas eram meninas. Foi uma menina quem me ensinou a subir em árvores, e era do alto das árvores que ela vociferava os palavrões mais pesados que eu já ouvira, a ponto de me fazer ruborizar. Foi com uma menina, também, outra menina de cabelos loiros cacheados, a despedida mais dolorida que enfrentei quando meus pais decidiram mudar de país, tentar retomar a vida na Argentina.

Quando voltei, anos depois, já se instaurara entre mim e as meninas uma distância intransponível, uma insuperável timidez que devia vir da nova atração que elas exerciam sobre mim. Essa distância, sim, me parece um tanto mais compreensível, embora possa existir de modo independente, como se sabe, das distinções convencionais de gênero. A retração que nos toma diante daqueles que nos cativam é uma contradição humana que talvez transcenda em alguma medida culturas e épocas, não sei. Eu olhava as meninas, olhava as minhas amigas de infância, queria retomar com elas as velhas brincadeiras, ou queria inaugurar com elas alguma coisa nova, mas não conseguia. Nunca deixei de encará-las, ainda assim, nem que fosse no ponto mais profundo de mim, com uma cumplicidade secreta, uma admiração, um carinho.

Sinto ter sido sobre essa velha cumplicidade que se assentaram as minhas amizades futuras com mulheres, vencida a fase da timidez, sinto que sobre esses afetos primeiros se firmaram também as minhas relações amorosas. Graças àquelas meninas desbocadas ou doces da infância, as mulheres não chegaram nunca a ser um outro absoluto, não ocuparam o lugar de alteridade indevassável e estranha, não se tornaram figuras remotas que me interessam apenas por seu corpo ou seu cuidado. Também por isso temo esse abismo que percebo aberto entre as meninas e os meninos do nosso tempo, entre a minha filha e o garoto que fugiu quando ela se sentou à mesa. Quanto terão perdido um e outro se demorarem demais a se descobrir, se acharem que não há entre eles nenhuma amizade possível?

Deixo, então, um vago apelo aos que me leem, na disparatada esperança de que uma crônica anedótica e íntima altere a cultura em alguma ínfima medida. Que façamos a devida leitura do espaço, que aspiremos um litro de ar e tratemos de lançar os nossos filhos e filhas em novos encontros, novas amizades, novos diálogos, diversos, improváveis, desconhecidos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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