Palavras demais -- um discurso contra o excesso verbal dos nossos dias
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Dos muitos modos de nomear o excesso que marca os nossos dias, a insensata exorbitância de tudo, talvez um dos mais razoáveis seja afirmar que vivemos entre palavras demais. Palavras que nos cercam por todos os lados, palavras que também proferimos com fartura: nenhum de nós quer fazer do silêncio a sua ilha. Povoamos o nosso mundo de dizeres infinitos que pouco ou nada dizem, e talvez por isso já não sejamos capazes de nos ouvir, já não consigamos entender a nós mesmos.
De toda parte nos atinge a profusão de palavras, escritas, gravadas, entoadas na imediatez de cada hora. Não vou enumerar aqui as tantas circunstâncias em que temos suportado esse excedente verbal. O leitor sabe bem quanto tem trocado o silêncio por palavras, a música por palavras, a memória por palavras, o pensamento por palavras, o sono por palavras. Este mesmo texto é um exemplo de como a infração se dá: o leitor sabe que já deveria ter me abandonado para não se afligir com mais uma visão apocalíptica das coisas, para encontrar uma calma despojada de linguagem, mas segue em frente porque as palavras se tornaram seu vício e seu prazer maquinal.
Mesmo entre amigos, mesmo entre amores, como têm transbordado palavras ágeis em encontros que já foram sobretudo reminiscências lentas, olhares mudos, sorrisos sem razão. Mesmo quando há vontade de calar o mundo por um momento, por uma tarde, uma noite, dá-se a invasão das palavras dentro da própria relação, vaza no diálogo aquele tanto que se leu e se ouviu, toda a bibliografia da banalidade. A conversa que então poderia ser íntima e real sofre o contágio das muitas palavras. Falta algo de fundamental ali onde tanto sobra, falta a entrega da presença, o carinho sem distração, a permanência lado a lado e nada mais.
Um pai com seus filhos, com suas filhas, disso sei bem, quantas vezes descobre a ineficácia das palavras. Quantas vezes percebe que calar é mais expressivo do que consolar, explicar, impor lições, esbravejar. Calar e oferecer um abraço, ou calar e sair de cena, deixar que o silêncio fale à inteligência infantil. As crianças estão cansadas do excesso de palavras, mesmo elas que tentamos proteger da informação interminável, que não queremos que partilhem do nosso vício pelo banal. As crianças estão cansadas desse excesso que se instaura em nossas vozes, nas vozes de seus pais, dessas palavras incessantes que deixaram de comover, deixaram de significar.
Às vezes sinto um cansaço semelhante, e é terrível o que me torno: sou um escritor cansado das palavras. Escrever passa a ser, então, um ato bastante penoso, uma indulgente entrega à contradição. Me permito escrever ainda que guarde a dolorosa consciência de estar dispondo no mundo mais algumas palavras que sobram. Faço, comigo mesmo, a mais arriscada das apostas: de que a literatura, feita inevitavelmente de palavras em acúmulo, possa sanar o mundo de seu excesso de palavras.
Nessas horas penso naquele pai que sempre foi quieto, "nem mais estúrdio nem mais triste que os outros", e um dia se lança às águas numa canoa solitária para nunca mais dizer nada, décadas a fio, em "A Terceira Margem do Rio", conto grandioso de Guimarães Rosa. E penso no mais célebre dos lacônicos, o Bartleby de Herman Melville, com seu teimoso poder de recusar ordens e se abrigar do ruído do mundo, repetindo ao infinito sua única frase: "Acho melhor não". Sim, talvez não passem de dois loucos, e é certo que antecedem em muito esta compulsão atual, mas não deixam de ser histórias de reação ao excesso de palavras, histórias de resistência pela mudez e pela inação.
Nessas horas não me quero mudo, mas sim um pouco mais contido, mais atento à essência das coisas, à procura da palavra justa que algo redima. Nessas horas tenho alguma esperança de que a literatura, com sua ventura de palavras, seja capaz de reinventar o silêncio que deseja ao seu redor. Nessas horas procuro eu mesmo me abrigar do ruído do mundo, diminuir um pouco o volume das palavras, para quem sabe por fim ouvi-las.
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