Julián Fuks

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Opinião

Os assustadores cinco anos: observações a partir do grito de uma criança

Muito já se falou sobre os terríveis dois, em geral apelando à autoridade do termo anglófono, os terrible two. Também já ouvi algumas menções aos espantosos três, um pouco mais escassos em estridências que o ano anterior. Dos apavorantes quatro escapamos quase incólumes em casa, confiantes de que o pior havia ficado para trás. Foi uma surpresa, então, a entrada repentina nos assustadores cinco, que chegaram com uma carga ainda desconhecida de sobressaltos e tensões. Eis a infância em seus desafios contínuos, menos fartos que suas lindezas, isso é certo, mas a infância que nunca parece ceder de vez à calma que mereceríamos.

É claro que já não estamos nos choros triviais dos primeiros tempos: existe um crescimento, afinal. Mas há algo que volta a trovejar na criança de cinco anos, mais esporádico, menos banal, contrariando as alegrias tão cotidianas e o prazer indubitável da descoberta do outro. Falo daqueles momentos que provocam o exaspero parental e nos levam a perguntar com espanto: será isso normal? Por sorte tenho ao meu lado uma irmã pediatra com olhar psicanalítico, irmã sensível e arguta que deveria ser política pública universal. É ela quem diz que, sim, isso é esperado, há mesmo algo dessa ordem se passando com frequência em crianças dessa idade. Algo que se costuma associar a um acirramento final do complexo de Édipo, antes de sua dissolução em tempos mais calmos.

Nessa fase, ao que parece, é que a criança estaria mais bem disposta para assassinar o pai e se apoderar da mãe. Mas como as configurações familiares andam complexas e têm rompido tais papéis convencionais, não é incomum nas melhores famílias que a criança queira um dia matar o pai, no dia seguinte matar a mãe, no terceiro matar a irmã, e então se casar com o sobrevivente da vez seja ele quem for, ou com todos ao mesmo tempo numa grande festança. Como matar não consta de fato em seu repertório de ações, ela se contenta com gestos menos radicais, como gritar, bater portas, esbravejar, criando o mais inventivo drama que turve o que seus pais concebiam como harmonia familiar.

Não, desalentado pai, estarrecida mãe, não é só na sua casa, não é só a sua criança. Tenho certeza de que há agora os que me leem e percebem com alívio que esse não é o seu caso, que fizeram tudo certo e por isso estão tranquilos, que seu filho é agradável e jamais teria tais atitudes hostis. Sei do que falam, sou pai de outra criança serena e sábia, mas devo ressalvar que nada disso chega a ser mérito de um pai, nem demérito de outro, e que não há a princípio nem prêmio nem culpa a arrogar. O caso é que as crianças são seres de absoluta imprevisibilidade, são da ordem indecifrável do humano, e suas personalidades parecem ter pouco ou nada a ver com o que pai e mãe cuidadosamente lhes aportamos.

Crianças não são seres moldáveis, nós não somos seus artífices ou seus artesãos. Winnicott já o disse com precisão: em toda criança há "uma centelha vital" muito própria, toda criança é "uma organização em marcha". Avança em seus caminhos particulares e só o que nos cabe é lhe dar passagem, ou ir aplainando o terreno para que seja uma viagem mais suave, ou quem sabe guiá-la um pouco por vias boas. É claro que às vezes olhamos e parece que essa marcha incontível está acelerada demais e vai nos atropelar, ou então que se fez marcha ré e já não sabe para onde vai. É normal, leio em Brazelton, outro pediatra: a criança contém em si todas as idades que já viveu e as manifesta em distintos momentos, cabendo aos pais aceitar com naturalidade esses movimentos inesperados.

Por sorte, o pai da criança de cinco anos não tem a mesma idade que tinha no tempo de sua filha de dois ou três ou quatro anos, e pode assim usar a experiência a seu favor. Dos novos recursos a serem experimentados, está a possibilidade de uma autonomia maior, não da criança, mas do adulto em questão. Algo como um breve lapso de emancipação parental, uma distância emocional em relação ao drama que toma a casa. Não se pode cair no nervosismo da criança, em suma. Uma criança que grita e bate portas não pode encontrar do outro lado alguém disposto a rivalizar na brusquidão. Nesses momentos vale mais tornar-se outro, separar-se da própria filha por um instante, construir alguma paz em outro cômodo. E então a menina pode perceber, como sempre faz, que lhe basta atravessar a porta para alcançar uma paz semelhante, e assim retornar à sua existência habitual de graça, inteligência, ternura, argúcia, charme.

Às vezes acho que consigo, sou capaz de esquecer a voz da minha filha que continua a esbravejar no quarto ao lado, sinto que abri espaço no caos para um pensamento próprio. Às vezes percebo que não, que seu grito continua a reverberar em mim não importa quanto eu tente me distrair. Hoje eu tinha outro texto para escrever, até me esqueci de qual seria. Hoje me pus a escrever este texto porque um grito trovejou pela casa e eu quis me mancomunar com outros pais, dizer quanto podem ser difíceis os terríveis dois, os espantosos três, os apavorantes quatro, os assustadores cinco. Dizer que, no fim, só me resta um recurso, o mais bonito e o mais fácil de todos: continuar a amar a minha filha, com um amor intransitivo, profundo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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