Julián Fuks

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Opinião

O triste Brasil que o Brasil precisa conhecer: o caso Pau D'Arco

O Brasil não conhece o Brasil. Isso já muito se disse, já ficou gravado em nosso imaginário no timbre de Elis Regina, dando ao primeiro Brazil um z que nos afasta, nos faz estrangeiros em nosso próprio país. Mas não tenho tanta certeza. Acho que o Brasil chega muitas vezes a se conhecer, depara-se consigo mesmo de forma extrema, enxerga-se com sofrida nitidez, e então prefere esquecer de si. O Brasil é essa abstração que nosso pensamento visita de tempos em tempos, ou que uma notícia revela bruscamente, e que nos assombra de tal maneira que precisamos nos proteger, guardar distância, ignorar o que já sabemos.

Pensava algo disso ainda tomado pelo estarrecimento, o corpo estremecido por uma indignação comovida, depois de assistir a um documentário fortíssimo. Trata-se de "Pau D'Arco", filme dirigido por Ana Aranha e produzido pela Repórter Brasil, por ora presente apenas em festivais, espero que em breve acessível a qualquer um que deseje igualmente se estarrecer. Conta a história de uma chacina, uma entre as muitas chacinas rurais que marcam a nossa história com agá maiúsculo, o assassinato a sangue frio de dez trabalhadores sem-terra pelas mãos do Brasil, isto é, da polícia. Conta a história desse horror que também nos define, para além de toda beleza, toda graça, todo lirismo, dessa crueza bruta em que consistimos.

Quem esteve atento ao noticiário na semana do 24 de maio de 2017 soube e compreendeu com exatidão o que aconteceu ali, antes de porventura esquecê-lo: um massacre covarde em nome da manutenção de uma propriedade privada, fazenda destrutiva numa margem da Amazônia, improdutiva havia muitos anos. Não há nesse caso, a princípio, nenhuma novidade, nenhuma surpresa, nenhum mistério. Estamos diante do tantas vezes visto: as forças do Estado servindo a interesses particulares, a violência oficial se impondo sobre os vulneráveis, os desvalidos da terra. É mais uma dessas histórias brasileiras que parecem nos convocar a olhar, padecer e partir.

A diretora, no entanto, esteve lá nos primeiros tempos após o massacre e não quis tão rápido se afastar, resolveu permanecer. Fez o que a imprensa não costuma fazer, passou a acompanhar com afinco a evolução do caso, explorou os obscuros meandros do sistema judiciário paraense, entrevistou tantas vezes seus personagens que deles se fez amiga e confidente. E é assim, por lentes distantes que pouco a pouco vão se fazendo mais íntimas, que ela nos dá a conhecer dois homens impressionantes, pontos de inflexão que fazem dessa narrativa de dor um exemplo de luta. Eis o Brasil mais complexo que essas imagens revelam, feito de terror e resistência em medidas semelhantes, em disputa infinita.

Fernando dos Santos, trabalhador rural vinculado ao MST, estava na cena da chacina, protegeu-se das balas sob o corpo cravejado de seu companheiro, arrastou-se até a porta sem ser visto pelos policiais assassinos. É a principal testemunha ocular do crime, e fala no documentário com coragem e desenvoltura, conta em detalhes o que viu, batalha ainda para que a terra seja garantida aos sobreviventes. Passou a receber ameaças constantes dos mesmos policiais ainda impunes pelo Brasil, isto é, pela justiça. O leitor que não deseje saber demais sobre o filme ou sobre o país que salte as próximas linhas. O nome de Fernando voltou a ocupar os jornais no início de 2021, quando ele foi assassinado pelas costas em sua casa, horas depois de ter enviado uma mensagem à diretora dizendo que se via em risco e precisava sair dali.

José Vargas, advogado do MST, é o protagonista que nos resta para chegar ao final do filme. Com ele também a realidade se faz mais sinistra do que imaginaríamos. Depois de ele obter uma pequena vitória em nome dos assentados de Pau D'Arco, o Estado do Pará dá um jeito de transformar Vargas no réu de um caso não relacionado de assassinato, e o encarcera por algumas semanas afastando-o das filhas, e o isola em prisão domiciliar durante mais de um ano. O choro de Vargas no documentário é um momento comovente em que talvez possamos ouvir o choro de muitos outros militantes. Ante a morte de Fernando, Vargas se pergunta com franqueza se caberá seguir adiante, se a luta de fato vale a pena diante de tanto descalabro, e suas palavras calam fundo nos que assistimos, agora emudecidos.

O Brazil não merece o Brasil. Do Brasil SOS ao Brasil. Voltam à minha mente os versos cantados por Elis Regina, junto com as imagens vívidas do documentário que vi há alguns dias, em sua estreia num festival de nome tão significativo: É Tudo Verdade. Parte de mim desejaria esquecer uma verdade tão triste, voltar às distrações costumeiras, ignorar que naquele dia tive notícia de um país terrível, o meu próprio país. A outra parte é mais inteligente e sabe que é preciso reagir, é preciso romper o silêncio e a distância e difundir essa história tanto quanto possível. É preciso que todos a conheçam, para que enfim haja chance de alguma justiça, para que ela nunca mais se repita.

Onde assistir: Estação Net Botafogo, 12/04, às 18h30. Estação Net Rio, 13/04, às 16h

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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