Julián Fuks

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Opinião

Ver para escrever: a cidade em movimento revela sua riqueza

Em vez de escrever sobre o que já sabe, escreva sobre o que vê. Leio essa frase num livro de Sigrid Nunez, conselho que ela recebeu de um amigo para que a escrita não se faça doutrinária e comum. Leio essa frase e sinto uma vontade repentina de fazer o que ela faz, o que ela narra em seguida, de caminhar pelas ruas da cidade ensandecida e ver, de seguir rente aos personagens que passam a cada segundo e ver, de me fazer testemunha ocular do dia presente.

São dois ou três quarteirões entre minha casa e o escritório, esse é o quinhão de mundo que me cabe habitar, o retalho de mundo que tenho para descrever. A princípio, como ela, dou atenção aos corpos em posição inusual, estendidos no chão, esses traços universalmente melancólicos que se repetem na minha cidade e na dela, em todas as cidades, talvez. É o que fazemos quando nos pedem para ver, enfim enxergamos aquilo que nos empenhávamos em ignorar, para que a vida não fosse só indignação ou tristeza. Um homem está deitado no chão, vejo seus pés descalços. O homem tenta dormir, embora não seja assim tão cedo, maldiz um caminhão que passa com ruído, lança uma das mãos no ar, esbraveja.

Vejo um prédio se erguendo também ruidosamente, um guindaste a se mover com lentidão, corpos de pedreiros debruçados sobre aquilo que em breve serão janelas. Uma cidade toda a se destruir para que surja uma nova cidade por cima, mais cara e reluzente. Mas sobre isso não posso escrever. Isso é o que já sei, o que o leitor já sabe. Não é o que vejo, é o que concebo, recrimino, lamento.

Vejo uma senhora se escorando em sua filha, também senhora, na saída do supermercado. Percebo que não sei bem quem é filha de quem, e penso na imprecisão do tempo. Vejo ao menos três camisetas do Corinthians, uma com a inscrição do 77 eterno, outra exaltando a democracia corintiana. A terceira é mais simples e não preciso ler o que diz, é a que eu mesmo estou vestindo. Vejo uma menina de cabelos roxos, do mesmo tom de sua blusa roxa, levando um copo roxo de açaí nas mãos, uma menina que atravessa a rua às pressas para que os carros não a atinjam, sob uma árvore de flores roxas. O mundo é todo roxo por um segundo.

Vejo uma promoção de tapetes persas, coxinhas vendidas em baldes, ovos de páscoa nas vitrines de uma papelaria, panetones que restaram do último Natal, crepes feitos à mão em plena calçada, uma liquidação de camisolas de renda. Deduzo que a realidade do comércio é descontínua, caótica, esquiva a qualquer discurso que se deseje coerente.

Vejo uma mulher de uniforme com uma máquina portentosa e futurista, uma máquina que faz impermeabilização de sofás, leio na etiqueta. Vejo um caminhão betoneira bloqueando uma pista, duas luvas verdes penduradas na carroceria, como se o motorista tivesse desistido por qualquer razão e partido em busca de outra vida. Vejo a despontar pela rua palavras que sozinho eu não encontraria. Nunca pensaria em escrever numa crônica impermeabilização, betoneira, carroceria. O mundo oferece grande fartura de palavras, bastando ao cronista ouvi-las.

Um homem vê que eu o vejo, ou talvez apenas repare na minha camiseta. Estende o braço com o punho cerrado, quer que eu choque os nós dos meus dedos nos nós dos dedos dele. É o que fazemos. Saio contente com a interação inesperada. Me sinto menos só em meu trajeto que já termina, e no exercício de olhar os olhos alheios.

Chego no escritório quase suado, quase esbaforido, como se tivesse feito um largo passeio ao redor do planeta, três quarteirões em sete minutos. Agradeço em silêncio a Sigrid Nunez. Agradeço aos novos bandoleiros do bairro, que têm tornado imprudente caminhar com os olhos absortos no celular, e assim nos devolvem a paisagem, a cidade, os rostos dos outros, a existência concreta.

Ainda não escrevo, olho pela janela e contemplo com saudade o movimento. Não vi nada e tudo vi nesse passeio, concluo muito rapidamente. Vi sobretudo uns quantos sorrisos, gestos enfáticos, vozes estridentes, vi a vida que não aceita se limitar por suas contingências, que não se deixa parar nem calar nem abater não importa o que aconteça. Vi minha pobre cidade em sua imensa riqueza. Vi e vim aqui escrever.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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