Pode um artista tomar o país, a voz, o corpo do outro? O caso Emilia Pérez

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Pode um artista criar uma obra sobre qualquer assunto do mundo que o cative e o comova? Pode tomar posse artística de uma vida distante da sua, de um país distante do seu, de uma língua cujas nuances lhe são indiscerníveis? Pode fazer de uma tragédia desconhecida para si o cerne do que tem a dizer, pode entreter seus espectadores com um drama que lhe é totalmente alheio? Sobre os limites da arte, da literatura, do cinema, o mais comum é se desvencilhar dessas interrogações éticas e responder com um sonoro sim. Sim, o artista pode tudo, a única prerrogativa da arte é que seja livre. Mas, no mundo real, declarações simplistas assim às vezes definham; no mundo real, as consequências de uma arte mal concebida se fazem nítidas.
Três reluzentes mariachis compõem a imagem absurda de abertura, e não encontrarão função alguma nas duas horas seguintes. São o prenúncio da sequência de erros estéticos e políticos cometidos em "Emilia Pérez", o filme do francês Jacques Audiard que alguns têm chamado de controverso, quando poderiam chamar de ruim. Tudo aqui se converte em sua caricatura, em sua imagem alterada ao extremo, empobrecida, extrapolada para consumo de um público sedento por emoções vibrantes. O México talvez seja o local perfeito para uma operação indecorosa como essa: pela imagem-clichê de quem ignora o país, não é difícil situar ali todo o mal, a brutalidade, a crueza do narcotráfico e sua multidão de vítimas, a corrupção, a hipocrisia, o machismo.
"De que falamos hoje agora? Falamos de violência." Já na sequência o filme explicita essa disposição artificiosa de achar um assunto importante, na canção entoada em coro por uns quantos atores não-mexicanos, num estúdio que simula mal as peculiares ruas mexicanas, sua textura, sua luz. Nota-se que o autor precisou passear seu olhar pelo mundo à procura de uma aventura envolvente, capaz de produzir afetos nítidos, indignação, lamento. Foi se deparar com a estapafúrdia história de um traficante que se arrepende e quer mudar de vida, e para isso decide se fazer mulher. "Quando falamos de violência, falemos de compaixão", segue a duvidosa musiquinha. E escancara o problema alguns versos adiante: "Abracemos a miséria". Triste e indesejável abraço parece ter de aceitar todo um país.
Talvez seja a mais mirabolante expressão daquilo que o crítico Hal Foster descreveu como fenômeno bizarro do nosso tempo, "o artista como etnógrafo". Na falta de uma história própria e legítima, o artista remete seus anseios criativos a uma alteridade distante, vista de maneira superficial. Se sua própria existência banal não comporta um drama, basta apelar a supostas biografias alheias que se mostrem mais atraentes. Rende-se então, nas palavras de Foster, à "fantasia primitivista" de que o outro habitaria a verdade, ou ao menos de que o outro experimentaria a velha aventura que a vida do artista já não comporta. Agentes de uma nova globalidade, europeus e estadunidenses passam então a transpor as fronteiras de seus países à procura das histórias guardadas nos continentes que julgam atrasados.
Não se trata aqui, é claro, de algo como uma proibição de contemplar o outro numa obra cinematográfica, ou da ideia de que contar uma história seria missão exclusiva de quem a viveu. Trata-se de um problema mais simples e mais imediato: o desastre que acontece quando se tenta representar uma realidade de que se sabe pouco, quase nada. O manejo da língua ao longo do filme talvez seja o traço mais evidente dessa falha: para quem quer que fale espanhol e saiba diferenciar suas nuances, é sofrível acompanhar a sequência de frases inverossímeis, diálogos impossíveis, sotaques precários.
Há, por fim, a grave questão de gênero que o filme toma como central, e que elabora com a mesma precariedade de suas muitas vozes improváveis. Sobre isso o filósofo Paul B. Preciado, autoridade no assunto, já escreveu um artigo demolidor no jornal El País, apontando as múltiplas maneiras em que "Emilia Pérez" resulta preconceituoso e equivocado. Está tudo relacionado, tudo deriva da mesma posição problemática do cineasta, da ignorância com que aborda seus temas e de sua incapacidade de alterar a visão primordial da qual parte. O filme não nos leva, segundo Preciado, "nem ao México nem ao mundo trans, e sim ao coração da transfobia racista europeia". Colonizar é, afinal, invadir o lugar do outro, tomar o seu espaço, explorá-lo: aqui temos um filme que coloniza um país, suas vozes, seus corpos.
Volto então à interrogação inicial. Pode um artista criar uma obra sobre qualquer assunto do mundo que o cative e o comova? Sim, claro que sim, afirme-se sua máxima soberania autoral, aceite-se o necessário princípio de liberdade. Mas que entenda esse homem, e que entendam outros tantos que realizam o mesmo gesto temerário, que entendam que correm o risco de incorrer numa perda brutal de autenticidade. E que é raro que uma obra artística consiga escapar a um tão grave vício de partida.
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