Sem anistia: o passado é também o presente em 'Ainda Estou Aqui'
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Mesmo de férias, quis me unir ao riso e à empolgação que tomou conta do país, à celebração do nosso cinema e do que há de luta na nossa história. Comemoro o feito da adorável Fernanda Torres com um convite ao pensamento crítico. Para falar desse filme importante, baseado num livro importante, passo a palavra a Fernando Seliprandy, historiador que tem abordado de maneira profunda e original o cinema brasileiro, em suas resignações e resistências.
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O ano mal havia começado e os brasileiros já comemoravam a premiação de Fernanda Torres com o Globo de Ouro de melhor atriz em filme dramático. Seria exagero falar em um verão "Ainda Estou Aqui", mas o fato é que o prêmio suscitou um entusiasmo traduzido na enxurrada de memes celebrando a vitória. O Globo de Ouro coroa uma trajetória do filme que inclui sucesso de bilheteria, ampla repercussão e outro relevante prêmio internacional, o de melhor roteiro no Festival de Veneza. As expectativas para o Oscar também entram nessa equação.
Entusiasmos como esse costumam gerar desconfiança em críticos mais rigorosos. A argumentação neste rápido comentário segue outra linha, vale adiantar. Porque torcer o nariz para o barulho em torno de "Ainda Estou Aqui" significaria abrir mão de compreender o filme como fenômeno social inserido em uma perspectiva histórica. Um filme desses nunca é só uma obra sobre o passado, a ser escrutinada com critérios estéticos e régua política. Um filme desses é também um testemunho de sua época.
"Ainda Estou Aqui" é um filme empático com as vítimas da ditadura. Isso não é pouco quando se considera que o Brasil vive uma conjuntura política em que setores da extrema direita reivindicam abertamente a violência de Estado, de 1964 e de hoje. O que significaria essa sensibilização, essa compaixão com a situação de uma família impactada pela violação dos direitos humanos perpetrada pelo Estado? Mais do que isso, como poderia ser interpretada a repercussão positiva de um filme assim empático com as vítimas da ditadura?
Obra e fenômeno social não se separam. Aqueles críticos mais rigorosos poderiam dizer que se trata de um filme que despolitiza a violência ditatorial. Que coloca no centro do debate uma vítima inocente, bom pai e marido carinhoso, uma vítima mais palatável como vítima - diferentemente, por exemplo, daqueles que pegaram em armas contra a ditadura. Um filme que representa a violência do sistema repressivo como uma descida ao inferno cujo maior impacto é romper a harmonia ensolarada do microcosmo familiar. Esses críticos mais implicantes poderiam também ver na trama certa dose de sentimentalismo, um drama familiar embalado em uma reconstituição de época primorosa, uma trilha sonora envolvente etc. Um produto talhado para ter êxito no mercado cinematográfico, nacional e internacional. A conclusão, para esse crítico com má vontade com o filme, é que toda a agitação motivada por um prêmio internacional não passa de provincianismo.
Uma análise dessas é míope. Enxerga limitações "edulcorantes" na obra, mas não percebe que esses são justamente os traços que fazem do filme um fenômeno com profundidade histórica. "Ainda Estou Aqui" poderia ter sido realizado em 1982. Esse é o ano de produção de "Pra Frente, Brasil", dirigido por Roberto Farias. É como se a vítima inocente Jofre, em 1982 interpretado por Reginaldo Faria, reencarnasse agora no Rubens Paiva vivido por Selton Mello. É como se o drama da família destruída pela ditadura, com a distância temporal, enfim pudesse ganhar nomes e sobrenomes reais. Os filmes são muito diferentes em vários aspectos, mas a aproximação não é descabida no que diz respeito à centralidade da vítima inocente, bom pai e bom marido, como meio de ampliar a aceitação da ideia de que a violência da ditadura é injustificável.
Em 1982, quando "Pra Frente, Brasil" foi realizado, o país estava em pleno processo de redemocratização. Historiadores e movimentos sociais já enfatizaram que esse processo foi marcado pela conciliação e por uma série de concessões, sendo a mais marcante delas a Lei de Anistia de 1979, que ainda está aí vigente. Uma pergunta que podemos fazer hoje é esta: o sucesso de "Ainda Estou Aqui" seria o sintoma de uma repactuação democrática após o estrago causado pela extrema direita?
Aqueles críticos rigorosos vão acusar que esta é uma leitura demasiadamente otimista, entusiasmada talvez, que tenta transformar limitações estéticas e políticas do filme em um horizonte democrático. Pode ser. Afinal, um drama familiar até é passível de repetição em outro filme, com outros nomes, mas a História não se repete. Repactuação democrática ou não, o que o Brasil não pode repetir em hipótese alguma é o erro da anistia.
* Fernando Seliprandy é historiador e professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná)
5 comentários
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Andre Baptista Gelio
Todos os comunistas, extrena esquerda e guerrilheiros que pegaram em armas foram anistiados após o regime mik=litar. Uma coisa eu te digo, historiador de meia tigela. Enquanto não houver anistia para os que NADA fizeram no 8 de janeiro, este país seguirá dividido e a tendência é piorar. Ou libertam quem estava com biblia nas mãos ou escrevera a frase do ministro Barroso em uma estátua, ou só vai piorar a situação do país. Voces estão perdendo as narrativas e a guerra ideológica. É prudente anistiar quem, a princípio de conversa, não eria razão para ser anistiado. O caso do Alexandre, o Breve, a gente vê depois