Julián Fuks

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Opinião

O prazer e o desespero da procura: uma crônica contra a angústia

Houve um tempo em que acordava angustiado nas sextas-feiras. Os olhos ainda turvos, as costas rendidas à cama, vinha de súbito a consciência de estar em falta. Era sexta e eu ainda carecia de uma ideia justa, digna, válida, uma que merecesse ser alinhavada em palavras. Em poucas horas a editora estaria a tamborilar os dedos em sua mesa imaginária, lamentando o desfalque, maldizendo o dia em que contratara um literato. E logo meu fracasso estaria estampado no portal, sem escândalo nenhum, claro, mas talvez suscitando a suave indignação de um leitor habitual: que terá sido do Fuks hoje? Tudo isso eu precisava imaginar por um átimo, antes de me pôr a trabalhar. Temer, sofrer, desesperar: era raro que minha escrita prescindisse desse ritual.

Hoje não escapo de todo resquício desse velho desespero, mas percebo que ele vem acompanhado de algum prazer, uma ânsia pelo pensamento novo, livre, indeterminado. Não sei que estranho fenômeno terá se dado em mim, mas agora gosto de acordar sem saber que diabo terei a dizer, gosto de não dispor de uma ideia prévia bem estruturada. Não porque despreze o texto consistente, estudado, refletido em cada minúcia, ninguém me entenda mal. Não porque tenha me feito confiante demais; ainda temo, leitor, o seu desdém e o seu escárnio. Mas porque sinto, vencendo os medos infantis, atravessando a aflição do vazio, sinto o entusiasmo indubitável da procura.

Eis um exercício que recomendo aos escassos leitores desta coisa alguma, sejam eles ou não cronistas. Calar os rumores estridentes do mundo, calar os bufões com suas promessas sempre terríveis, calar por um instante os prenúncios catastróficos de futuro — não vá querer o cronista se fazer desesperançado e soturno. Afastar-se também das distrações excessivas, das imagens repetidas, dos risos fáceis, das notícias vadias. Calar os rumores estridentes do mundo e ouvir os próprios pensamentos, por fim. Vasculhar com máxima intenção de profundidade a própria vida, e nela tentar encontrar alguma verdade assimilável, algum sentido transmissível.

Uma vez cansado de si e dos próprios raciocínios, recordar os acontecimentos mais notáveis do ano que acaba de surgir, sobretudo os banais e comezinhos, mais atraentes a uma escrita cotidiana. Tentar resgatar da vastidão da memória alguma das boas anedotas de amor que se ouviu. Perguntar-se se haveria uma crônica a depreender do barbeiro abandonado por sua mulher, o barbeiro que lhe ofereceu o corte de cabelo mais triste de sua vida, arriscar e abandonar algumas linhas sobre esse homem hábil e bom, agora cabisbaixo e infeliz. Fazer desse exercício uma reconexão com o mundo ao redor, com as dores próprias que se avivam ante as dores dos outros.

Se ainda assim pensamentos e dores não se mostram de grande valia, ou se porventura a vida não se faz suficientemente nítida, há recursos que um cronista aprende e se tornam fundamentais em seu ofício. Recomendo com vivacidade o prazer afoito de percorrer às pressas alguns livros, de tomar nas mãos escritores cativos e tentar decifrar a razão de velhos grifos, ou então de ler sem premeditação um autor ou texto nunca lido. Deparar-se assim com frases como estas, de Clarice Lispector, "Ah, como devoro com fome e prazer a revolta", ou "É, mas não estou gostando muito deste pacto com a mediocridade de viver". Ler, talvez, para romper com essa tal mediocridade de viver e alimentar uma fome própria de revolta, ainda que não se saiba bem por quê.

Chegar, enfim, à poesia, ouvir a procura de Drummond por um único verso impossível que teima em não sair, descobrir que a poesia daquele momento inundava sua vida inteira. Eis a graça alcançável agora pelo cronista, uma graça de empréstimo, sim. Não a possibilidade de levar o leitor consigo a esse prazer, já não haveria tempo para isso, já não haveria espaço, a crônica se deixou escrever à revelia de si. Mas continuar procurando a crônica mesmo assim, continuar nesse misto de desespero e prazer, e sentir que a prosa desse momento inunda a sua vida inteira, a minha vida inteira, apagando por fim, e por quanto durar, todo resquício da angústia de sexta-feira.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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