Rico Vasconcelos

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Opinião

Barreiras de acesso à testagem podem impulsionar epidemia de ISTs no Brasil

No Brasil de 2024, o plano de controle das epidemias de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) bacterianas, tais como sífilis, clamídia e gonorreia, está baseado em apenas duas estratégias:

  • o uso de preservativo nas relações sexuais
  • e o tratamento das infecções sintomáticas e assintomáticas que forem diagnosticadas

Se olharmos com atenção para a segunda medida citada, vai ser fácil perceber que, no nosso país, dependendo da IST em questão não é nada fácil fazer um exame diagnóstico.

Se para a sífilis temos a sorte de já existirem testes rápidos que só precisam de uma gota de sangue e alguns minutos para nos dar um resultado preciso, para clamídia e gonorreia vivemos um verdadeiro apagão de testes.

O melhor teste para fazer o diagnóstico dessas duas bactérias é PCR (Polymerase Chain Reaction), aquele mesmo que usamos aos montes na pandemia de covid-19. Ele é um exame que procura pelo DNA bacteriano nos sítios em que essas ISTs podem ocorrer, como uretra, vagina, ânus e garganta.

Segundo o último Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral das Pessoas com ISTs do Ministério da Saúde, publicado em 2022, a realização do PCR para clamídia e gonorreia é recomendada para gestantes jovens, pessoas com ISTs, pessoas vivendo com HIV, vítimas de violência sexual e, semestralmente, para usuários das PrEP e PEP (Profilaxias Pré e Pós-Exposição ao HIV).

No entanto, apesar de o PCR ser um excelente teste diagnóstico, ele é um exame caro. E como tudo que é caro no Brasil, seu acesso é restrito.

O Ministério da Saúde tem em curso um projeto interessante de ampliação da rede de laboratórios que realizam esses exames, mas na prática hoje ainda é praticamente impossível se testar para gonorreia e clamídia gratuitamente no Brasil.

Para quem tem o privilégio de poder contar com plano de saúde privado, o cenário não é muito diferente. Nesse caso, a primeira barreira está na frequente recusa do convênio à realização de exames de rastreamento de gonorreia e clamídia, alegando que eles não estão no Rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), uma lista de consultas, exames, cirurgias e tratamentos que todos os planos de saúde são obrigados a oferecer aos seus assegurados.

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Se você procurar por "exames de PCR para clamídia e gonorreia" no Rol da ANS, vai se surpreender ao encontrar a obrigatoriedade da realização do teste de clamídia, mas não o de gonorreia. Ainda que houvesse uma justificativa científica para se rastrear apenas uma dessas ISTs, mais surpreso ainda você ficaria ao descobrir que em grande parte das vezes o kit laboratorial de PCR já pesquisa as duas bactérias simultaneamente, ou seja, não é nem possível realizar os testes separadamente.

Se uma pessoa teve sorte e o seu plano de saúde cobriu os dois PCRs, a segunda barreira estará à sua espera logo na etapa seguinte, pois as redes de laboratório não estão preparadas nem capacitadas para realizar corretamente as coletas de material nos possíveis sítios de infecção.

Nessa etapa, já ouvi relatos de pacientes com todos os tipos de desculpas para não fazer o exame: "Esse exame só pode ser coletado por funcionário homem", "Tal pessoa que sabe coletar não está na unidade", "Nessa unidade não coletamos, só na do outro lado da cidade", "Só colhemos esses exames às terças-feiras", "O convênio só libera a coleta de um exame por dia" etc.

Diante desse cenário sombrio para o controle de ISTs que são tão frequentes no Brasil e no mundo, me ponho a refletir. A estratégia de saúde pública existe, mas o quanto que essas barreiras para que ela se cumpra não estão na verdade impulsionando a disseminação dessas bactérias na população brasileira?

Imaginem como estaria hoje a epidemia de HIV/Aids no Brasil se aqui fosse praticamente impossível fazer um teste para esse vírus?

Penso que, enquanto esses exames não se tornam disponíveis pelo SUS, esse é o momento da mobilização para uma atualização do Rol da ANS para promover a ampliação do acesso à testagem de ISTs no Brasil.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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