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ANÁLISE

'Matrix Resurrections': como a internet foi de heroína a vilã em 20 anos

Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) em "Matrix Resurrections" - Divulgação/Warner Bros.
Neo (Keanu Reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) em 'Matrix Resurrections' Imagem: Divulgação/Warner Bros.

Lucas Carvalho

De Tilt, em São Paulo

22/12/2021 10h00

Este texto contém spoilers de "Matrix Resurrections".

"Matrix Resurrections" estreia nos cinemas brasileiros nesta quarta-feira (22) continuando, quase 20 anos depois do último filme da franquia, a saga de Neo, Trinity e companhia. Mas além do kung fu e das questões filosóficas, o filme também discute a tecnologia moderna e, principalmente, o estado da internet hoje.

Se em 1999 a internet incipiente ainda fazia brilhar os olhos de jovens como as irmãs Wachowski, que tinham entre 32 e 34 anos quando fizeram o primeiro filme, como um mundo de possibilidades e um terreno promissor a ser explorado por mentes "livres", em 2021 a web é vista por Lana Wachowski, que dirige sozinha o novo filme, como apenas a ferramenta que os conglomerados do momento usam para subjugar a humanidade.

Em outras palavras, se em "Matrix" (1999) o mundo real fazia um paralelo com a liberdade da internet, em "Matrix Resurrections" (2021) a própria realidade simulada e angustiante que prende os humanos é a analogia usada para discutir o estado atual da web.

Como era a internet em 1999

Em 1999, ano em que o primeiro filme da franquia "Matrix" chegou aos cinemas, a internet era quase irreconhecível para quem nasceu pós-Orkut. Segundo um levantamento do final daquele ano feito pela agência de consultoria Nua, havia só 248 milhões de pessoas no mundo conectadas à rede —apenas 4% de toda a população.

Nesse terreno aberto, gigantes da tecnologia que controlam a rede hoje ainda eram minúsculos. Os sites mais acessados eram AOL e Yahoo, segundo dados da agência Comscore. Buscadores como Infoseek e Hotbot eram mais visitados que o Google, que nem aparecia na lista dos 20 mais populares. E mesmo assim os acessos eram bem pulverizados: nenhum site concentrava mais do que 3% de todo o tráfego na rede.

Além disso, a principal —quando não a única— maneira de acessar a internet comercial era através de um computador de mesa com conexão discada que interrompia a linha telefônica de uma residência. Sites demoravam a carregar mesmo nas máquinas mais avançadas da época, que tinham até 64 MB de memória RAM —hoje um celular básico tem quase 10 vezes mais que isso.

Foi nesse contexto que o filme "Matrix" de 1999 apresentou seu herói: Thomas Anderson (Keanu Reeves), um programador de uma "respeitável empresa de software" chamada MetaCortex —uma sátira da Microsoft, na época a maior empresa de tecnologia do mundo, avaliada em cerca de US$ 600 bilhões (valores não corrigidos).

De noite, porém, Thomas Anderson virava Neo, um hacker habilidoso "culpado de praticamente todo crime virtual para o qual existe lei", como diz o Agente Smith (Hugo Weaving) em certo momento do filme. Eram hackers, não necessariamente cibercriminosos, os usuários mais "livres" na internet de 1999.

Como Edward Snowden escreve em seu livro "Eterna Vigilância" (2019, Editora Planeta), a internet era, no final dos anos 90, uma terra de ninguém pouco a pouco explorada por pessoas comuns com um computador em casa —computador este bem diferente da máquina do trabalho.

"O acesso à internet e o surgimento da web foi a explosão do Big Bang", escreve Snowden. "Era uma comunidade sem fronteiras nem limites, uma voz e milhões de vozes, uma fronteira comum a todos, que havia sido colonizada, mas não explorada, por diversas tribos convivendo amigavelmente lado a lado, sendo cada membro livre para escolher seu próprio nome, sua história e seus costumes."

Em outras palavras, o filme de 1999 sugeria que o sistema que aprisionava os humanos, a Matrix, e empresas respeitáveis de software como a MetaCortex (Microsoft), eram os vilões. O mundo real, livre e inexplorado, fora do alcance dessas corporações e das máquinas malignas —a internet— representava a liberdade.

Três filmes e mais de 20 anos depois, os papéis mudaram.

A internet em 2021

A principal diferença entre a internet de 1999 e a de 2021 é o seu tamanho. O número de usuários cresceu para 5 bilhões, segundo a agência de dados Statista —quase 65% da população.

O acesso também se tornou ubíquo: em vez de um enorme computador com tela de tubo ligado a um cabo da linha telefônica, hoje navegamos por telefones que levamos para qualquer lugar. Quase 70% de todo o acesso à web hoje é feito por celulares, segundo a consultoria Strategy Analytics.

E com esse crescimento, os problemas também cresceram. Em vez de hackers e blogs, a web é hoje dominada por gigantes corporativos que tomaram conta do tráfego na rede. Dois em cada três acessos à internet hoje vão parar no Google, Facebook, Amazon ou Netflix, segundo a consultoria Sandvine.

Quando um desses sai do ar, é como se toda a internet sumisse —e com ela, parte do mundo real também. Foi o que aconteceu quando o Facebook sofreu um apagão de 7 horas recentemente e milhares de pequenos negócios sofreram prejuízos incalculáveis.

Além disso, a concentração de tráfego nas redes sociais modernas tem levado a problemas que colocam em risco até mesmo democracias. É o que destacou Brittany Kaiser e o escândalo da Cambridge Analytica, documentários como "Privacidade Hackeada" e "O Dilema das Redes", e vazamentos como os de Frances Haugen e os Facebook Papers.

É neste contexto que "Matrix Resurrections" chega aos cinemas. A Matrix, desta vez, não é representada por um emprego opressivo num cubículo apertado de uma sátira da Microsoft. O sistema de opressão que as máquinas usam no novo filme é mais sutil, desenhado para atender aos desejos dos humanos escravizados.

É o que explica o personagem Analista (Neil Patrick Harris), em certo momento do filme, ao detalhar como a sua nova versão da Matrix mantém humanos sob controle. Segundo ele, o fracasso da versão anterior da Matrix tinha a ver com seu criador, o Arquiteto (vivido nos filmes anteriores por Helmut Bakaitis), um programa "obcecado por fatos e números".

O que o Analista entende é que o segredo para o sucesso é o contrário: os humanos não querem fatos, querem ficção. E o melhor jeito de fazê-los acreditar numa ficção é envelopá-la em sentimento. Se essa descrição lhe soa familiar, é porque é exatamente o ingrediente secreto das redes sociais.

Segundo Frances Haugen, o algoritmo das redes sociais que nos mantém viciados num feed recheado de notícias falsas e outras distorções da realidade se sustenta num ranking de engajamento que continua servindo ao usuário microdoses de sentimento. Uma notícia revoltante é compartilhada mais vezes que uma notícia banal, mesmo que seja mentira, e qualquer "conteúdo" que tenha o mesmo efeito aparece mais vezes do que aquele que não causa a mesma reação.

"Desespero e esperança são muito parecidos em códigos", diz o Analista em certo ponto de "Matrix Resurrections". Poderia também ser uma fala do algoritmo que comanda o feed do Facebook, Instagram, Twitter e TikTok. Se mexe com as suas emoções, faz sucesso. E essas microdoses de emoção servidas por horas durante o dia vão pouco a pouco te deixando viciado.

Tão viciado quanto os novos habitantes da Matrix em "Resurrections". Cumprindo a promessa feita no final de "Matrix Revolutions", nenhum ser humano é mantido no sistema contra sua vontade no novo filme. O problema é que o sistema é tão viciante e saboroso que quase ninguém realmente deseja sair. Parece a sua relação com o Instagram?

O problema não é a internet

Nada disso quer dizer que Lana Wachowski, diretora de "Matrix Resurrections", ou sua irmã Lilly Wachowski, com quem ela escreveu a trilogia original, acreditem que a internet é a vilã da humanidade. A web é só uma ferramenta, que em 1999 representava liberdade, mas agora representa opressão.

Os verdadeiros vilões em "Matrix Resurrections" são as máquinas descritas apenas como "os engomados", dos quais o Analista é uma espécie de "laranja". São os mesmos que comandavam a Matrix quando o Arquiteto era o mandachuva e são os mesmos que a controlam agora que o Analista o substituiu.

Se em 1999 os engomados usavam a Matrix para oprimir a humanidade com empregos monótonos em uma empresa respeitável de software, em 2021 eles a usam para alimentar humanos com microdoses de emoções extremas que os mantém viciados num sistema feito para escravizá-los.

Em outras palavras, os engomados representam o mesmo sistema que fez da Microsoft a vilã de uma geração de hackers que deram os primeiros passos na internet e também aquele que deu à Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) o poder de controlar mentes com um algoritmo viciante.

No fim das contas, "Matrix Resurrections" argumenta que os verdadeiros inimigos são aqueles que corromperam a internet e a transformaram, de um espaço de liberdade, em uma prisão de ideias.