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Opinião

Suspender a censura virou nossa forma oficial de diversão na vida digital

Tendo a achar sim que a vida digital tem algo que ver com o decréscimo de nossa capacidade de escuta. Não só porque as pessoas passam muito tempo nisso, mas porque elas aprendem novos modos de estar com o outro, para o bem e para o mal.

Antes, quando alguém tinha uma crença bizarra ou fora de esquadro, sentia-se acuada e desenvolvia formas de se conter; agora ela encontra "parceiros" para tudo na internet, inclusive para o pior. E em grupo a gente fica valente. Em grupo na internet, então, parece que o Maracanã está nos aplaudindo, quando na verdade são quatro ou cinco simpatizantes.

A liberação de censura depende essencialmente disso. Pensemos nas piadas ofensivas, contra um gênero ou um povo, quando é que elas acontecem? Para Freud, isso acontece quando temos certo tipo de "paróquia" que no fundo já pensa tudo aquilo individualmente, mas que quando se junta é levado a suspender a censura. E dali a pouco vão se juntar apenas para isso: suspender a censura.

É neste ponto que os objetos ou substâncias que podem ajudar nisso começam a substituir as palavras que faziam a mediação de aceitação e ultrapassamento da censura. De certa maneira, esta virou nossa forma oficial de diversão: suspender a censura. Quanto mais disso melhor, até o ponto em que em vez de falar e escutar, o ato de cruzar a censura resume o encontro. E aí entra esta ideia de que em grupo quem fala mais "alto" (no sentido de mais escrachado e chulo) e mais "baixo" (no sentido de desleal e intimidador), leva. Isso cria uma população de pessoas que só pode falar para emitir certezas e, consequentemente, à guerra aberta de opiniões.

Ora, como a gramática que liga as pessoas é esta da esquizo-paranoia (dividir para perseguir e perseguir para dividir) a solução prevista é o choque de massas vocais, que não estão dispostas à escuta, mas à dominação pelo eco. Essa moral de torcida uniformizada é duplamente surda: para os de dentro eu não preciso escutar porque sei o que eles vão dizer, e para os de fora, escutar é desnecessário porque afinal eu já sei quem eles são.

É importante lembrar que o narcisismo em si não é uma patologia. Sem o narcisismo seria impossível compartilhar socialmente nossos desejos e ideais. O narcisismo permite, por exemplo, que eu me reflita no outro, que eu me coloque no lugar dele, que eu o inveje por que ele tem algo que eu não tenho, que eu cobice ser o que ele é.

O problema começa quando temos uma patologia do narcisismo, que justamente me impede de exercer esta atitude reflexiva com o outro, porque ao assumir o ponto do vista do outro eu sinto que minha própria identidade está ameaçada. Ocorre que para funcionar e ser eficaz o narcisismo precisa da palavra, da palavra dita e escutada. Da palavra pessoal e insubstituível do outro, a partir da qual podemos nos reconhecer em uma instância terceira que nos compreende e define: a lei, a linguagem, a razão, ou seja lá que nome encontremos para isso, que torna possível a experiência de compartilhamento e de pertencimento.

Há exemplos muito menos espetaculares e muito mais corrosivos do declínio da escuta e da fala:

  • São os casais, casados há muito tempo, que podemos reconhecer nos restaurantes porque eles não trocam uma palavra entre si ao longo de todo jantar.
  • São os adolescentes que só conseguem falar do que bebem ou consomem.
  • São os amantes que não encontram palavras nem mesmo para designar o abismo de falta de intimidade no qual vivem.
  • São os médicos que não escutam mais seus pacientes, oprimidos que estão por receitas, exames e fichas que têm que preencher.
  • São os professores que temem perder sua autoridade empenhando sua palavra além do roteiro para o qual são pagos.
  • São as mulheres que vivem romances épicos, dos quais seus amantes jamais terão a mais pálida ideia.
  • São os homens que temem colocar uma palavra, como "eu te amo" ou "case-se comigo", no temor de que isso os comprometerá para sempre diante do tribunal imaginário da relação de compromisso.
  • São os vizinhos que jamais se metem na briga de marido e mulher, mesmo testemunhando sua devastação.
  • São os que sofrem cansados e em silêncio, imposto pelo temor de invadir a vida alheia, de um lado, e do outro lado, os que desejam ardentemente serem invadidos por algo que os tire da miséria ordinária de suas neuroses na qual vivem, mas que quando encontram esta palavra estrangeira, só sabem excluí-la como sinal de inadequação.
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Nossas crianças estão bem mais argumentativas, críticas e, no bom sentido, interessadas em razões do que as gerações anteriores. Elas não estão mais inteligentes que antes, apenas aprendemos dar valor à curiosidade que as caracteriza desde sempre. Afinal, é para elas que nos esforçamos por justificar que o mundo e o futuro valem a pena. É por elas que nós escondemos nossa disposição agressiva a chegar logos nos "finalmentes".

As crianças, me refiro às com menos de 10 anos de idade, são ainda uma das poucas posições nas quais seguimos uma espécie de autoridade espontânea e representativa. Ou seja, antes de se transformarem, com a nossa ajuda, em adolescentes que tudo sabem (porque atribuímos a eles o saber sobre a verdade de nossas próprias fantasias), as crianças precisam falar e nunca houve uma geração antes que escutou tanto as crianças quanto a nossa.

Crianças pequenas sabem brincar, e a fala produtiva possui em grande medida a estrutura de uma brincadeira. Não porque seja inconsequente, aliás, a criança nunca é inconsequente em seu brincar. Para ela aquilo é o que há de mais sério. Um equivalente disso, entre adultos se poderia encontrar em certo tipo de literatura menor. Não aquela que está comprometida em exibir o ego arguto do autor, mas aquela que está comprometida com o mistério poético da palavra, e do silêncio.

Vejo um tanto desta atitude em alguns professores, aqueles que ainda não temem dizer seu nome. Boa parte dos que se engajam nesta tarefa em nossos dias tem um compromisso com a palavra que é de outra natureza. Não penso que esta atitude ética, que Lacan chamava de "ética do bem dizer", seja coisa de profissionais ou de pessoas cultas. Há gente que teme esta disposição continuada a encontrar o que dizer, e de dizê-lo melhor e de se transformar procurando a melhor forma de fazê-lo. É o que se pode esperar da psicanálise, mas também do que alguns autores da filosofia chamam de ética da amizade.

No fundo, para recuperar o valor da palavra e da escuta, devemos antes de tudo nos escutarmos. No fundo, o que um psicanalista faz é atuar como Sancho Pança para seu paciente, que como Dom Quixote, diz a verdade, mas não onde ele pensa que ela está. E nós como Sancho apenas apontamos: escuta bem o que você disse.

Estamos tão fanáticos pelo desejo de nos fazermos escutar pelo outro que esquecemos que a escuta primeira é a escuta de si. Nela percebemos que sempre estamos a dizer mais ou menos do que queríamos dizer. Nela percebemos que o "querer dizer" não "entra em campo" (no sentido do ditado futebolístico que reza que o "se" não joga), e que a confusão de línguas com o outro começa pela impossibilidade de sermos transparentes a nós mesmos. É por isso que quando vamos falar aquilo que estava tão claro muitas vezes nos surpreendemos porque sai tão completamente outra coisa. É por isso que é tão difícil nos separarmos ou transformarmos isso que a psicanálise chama de discurso, ou seja, uma certa disposição a nos colocarmos em uma fala que já foi tão falada que se torna previsível e constituída.

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Hoje temos muito discurso e pouca palavra. E a tentação de renunciar à palavra própria, para ingressar em um discurso é tamanha que desaprendemos a reconhecer quando alguém está dizendo algo que não pode ser reduzido a uma "fala-tipo-vazia".

O neurótico é alguém que inventou uma espécie de lei particular que ele adora e consagra como uma religião para uso pessoal. Por isso, na neurose a palavra do outro é tão esperada (porque suspenderá a lei draconiana que o sujeito impõe a si mesmo) e ao mesmo tempo tão odiada e defletida (porque ameaça seu próprio culto egológico de sua identidade).

O discurso da tolerância e do respeito às diferenças chegou a uma espécie de esgotamento, o que foi antecipado e antevisto por muitos teóricos sociais e psicanalistas. A tolerância só funciona quando há espaço para todos. No fundo, ela faz a diferença ser possível porque ela está lá do outro lado, no condomínio do vizinho. Quando as diferenças sociais diminuem ou quando as crises territoriais se tornam mais frequentes, a diferença deixa de ser um valor e passa a ser imediatamente um problema a ser hierarquizado e dominado.

Quem dá aula em universidade sabe que há uma coisa temida por todos chamada reunião de departamento (do qual há similares no mundo corporativo e, certamente, o caso mais agudo é a reunião de condomínio). Em uma reunião de departamento estão todos, em tese, como iguais, discutindo temas que em geral são extremamente banais: horários de aulas, funcionamentos administrativos ou quem vai fazer a prova desta vez. O sentimento de irrelevância é rompido quando, pela menor das banalidades alguém discorda de outrem. No mais das vezes isso acontece porque sentimos que para participar de algo devemos dar um "palpite".

Os que trabalham em agência de propaganda ou participam de reunião de pauta, no caso de jornalistas, sabem bem que inferno é este. Alguém tem que opinar, meramente porque assim pode justificar sua existência. Não é só para encontrar algum reconhecimento no "produto final", mas para testar sua força opinativa, para medir o tamanho do seu território, ou seja, a força pura da "sua palavra". Mas assim a "sua palavra" não expressa um juízo autêntico sobre o que você pensa ou acha realmente importante para o processo. Ela externaliza que você é "alguém". E este alguém pode limitar, atravancar ou engordurar o processo até ele se tornar tóxico para todo mundo. Alguém que para ser respeitado deve ser temido.

É assim que doutos professores, com muitas coisas interessantes para fazer na vida, em prol dos alunos e do bem comum, gastam o melhor de sua palavra em uma espécie de jogo de War, para ver quem domina o mundo (composto pela vastidão dos corredores universitários). Aquela insonsa irrelevância foi ao final substituída pelo sentimento grandioso de que derrotar verbalmente o outro (sem escutá-lo, é claro), nos levará ao poder e glória universal. Isso tudo recheado por intrigas, inimigos ocultos e ressentimentos revestidos de verdadeiros "princípios" inarredáveis, preceitos éticos (que o outro nunca tem em igual medida) e toda sorte de moralidades de ocasião.

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Hanna Arendt, nos anos 1960, falava na banalidade do mal, nós aqui nos anos 2020, deveríamos falar na banalidade do bem, como uma das estratégias de ensurdecimento.

A ansiedade é uma forma da angústia que Freud chamada de "expectante", ou seja, uma angústia prisioneira do tempo futuro e desgarrada do passado. Ansiedade é expectativa mal posta, desejo mal encaminhado.

Nós temos duas maneiras de fugir de nossa miséria, que é também o nosso desejo: a primeira é refugiar-se em um mundo de fantasia, um lugar idílico no qual os conflitos estão suspensos e harmonia reina ao lado da suspensão das demandas.

Mas Freud descreveu outro tipo de fuga, que não é a fuga da realidade, mas a fuga para a realidade. O que nós chamamos de ansioso, o ansioso crônico é no fundo alguém que está constantemente fugindo de si para a realidade. Alguém que vai vivendo seus conflitos e impasses através da realidade, conferindo a ela um poder "curativo" e de "salvação" que nunca será realmente cumprido.

Este realismo espontâneo do ansioso o coloca em uma relação típica com a palavra. É a relação baseada na antecipação de saber. Ele sempre sabe o que o outro pode dizer, porque ele sempre já sabe o que pode acontecer, o que se dá na realidade e ela é sempre reforçadora de seus próprios complexos ansiosos.

Nunca faltará um fragmento de realidade realmente perigoso para a mãe que está preocupada com seu bebê. Jamais teremos uma surpresa da realidade para aquele que se obseda em fazer contas e planejamentos preventivos. Não haverá espaço algum para que a jovem apaixonada deixe algum espaço vazio no desejo de seu amante, de tal forma que ele a surpreenda, e logo se apaixone, ele também.

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Esta fuga para a realidade acompanha-se frequentemente de um fenômeno que concorre para a epidemia de surdez seletiva. Seletiva por que aquilo que confirma a expectativa do ansioso, aquilo que ele já está ouvindo desde sempre, isso ele não deixará de ouvir na primeira oportunidade que a realidade lhe oferecer.

Esta seletividade depende de um fenômeno anterior que é o seguinte: pessoas falam sozinhas. E falam sem parar. É o que Lacan chamou de "discurso interior", que funciona como uma espécie de narrador em paralelo de nossas vivências. Este outro é muito mais próximo e muito mais chato do que nosso vizinho, ou do que o militante possuído pela verdade. Este outro é a fonte de nosso maior amor e de nosso maior ódio, nossa sombra mais íntima que não nos deixa em paz.

Nós dizemos que os loucos falam sozinhos, mas é nisso que somos todos loucos, porque todos falamos sozinhos —nem que seja em pensamento, em murmúrios ou em autorrecriminações. Falar de verdade com o outro de tal maneira que ele se faça representante e fiel destinatário do Outro (com "O" maiúsculo) é muito importante porque faz silenciar este "discurso interior". É também o que pretendem inúmeras práticas de meditação, algumas baseadas em longos períodos de silêncio.

Como o "discurso interior" não para, nós nem percebemos muito bem como ele é uma voz que atormenta e empobrece nossa vida. É só quando suspendemos um pouco a identificação que fazemos entre este outro do "discurso interior" e este outro "real", depositário inadvertido de nossas projeções e ideais inconcluídos, que podemos encontrar a fala plena.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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