'Amigos imaginários', Rio Grande do Sul e o impacto eterno na vida do órfão
Não há como abrir os portais de notícia nas últimas semanas sem sentir uma dor profunda. A cada foto repleta de lama, a gente pensa nas pessoas: homens, mulheres e crianças encarando tantos lutos simultâneos e sem previsão de retorno à normalidade. É difícil falar sobre qualquer coisa no Brasil nesse indigesto maio sem pensar em morte, destruição, ganância e incompetência do poder público.
Mas há uma foto específica de uma criança de cerca de três anos, com um agasalho de frio pink e uma chupeta azul, sendo passada de um colo de militar para outro. Ali, eu me perco pensando por vários minutos. A imagem é de Michel Corvello, da Prefeitura de Pelotas.
Na cidade, e em todas as vizinhas, crianças estão sendo resgatadas sozinhas e chegam aos abrigos assim. Não se sabe bem sob os cuidados de quem estavam na hora da chuva e as fake news criadas (por quê, meu Deus) em cima de suas fotos em redes sociais não ajudam a localizar seus pais. Muitas delas talvez tenham se tornado órfãs na tragédia, mas com a água a cinco metros de altura nem essa certeza é possível ter. Enquanto isso, alguns encontros lindíssimos de mães e pais que percorreram abrigos e puderam abraçar seus filhos. Nem tudo é perda. A esperança existe em todos os cenários e é nela que a gente foca quando tudo parece estar (ou está de fato) ruindo.
A vida no resto do mundo, entretanto, continua. Estreia nessa quinta (16) o filme Amigos Imaginários, com Ryan Reynolds, que vive Cal, e Cailey Fleming, a garota Bea. O filme é dirigido por John Krasinski, que também faz o pai de Bea na história.
Bea ficou órfã na primeira infância e desde que a mãe morreu procurou evitar as brincadeiras criativas como as que fazia com ela em casa. Aos 12 anos, é uma garota séria e fechada e demonstra bem pouco as emoções. Até que precisa enfrentar o mesmo pesadelo outra vez: seu pai adoece e, enquanto se trata, ela precisa viver com a avó. Ali, descobre um mundo fantasioso de amigos imaginários que vai, aos poucos, rompendo as cascas que ela criou para si e devolvendo a esperança.
Em inglês, o nome Amigos Imaginários (Imaginary Friends) forma a sugestiva sigla IF. E isso quer dizer "Se...". Não há expressão mais usada para alguém que perdeu pai ou mãe na juventude. E se meu pai estivesse aqui? E se eu soubesse, na vida adulta, o que ele responderia para determinada situação? E se eu pudesse falar com ele? E se ele me apoiasse agora? E se fosse possível um abraço? — isso só para citar alguns dos tantos "ifs" que me pergunto diariamente há décadas.
Na pré-estreia do filme, no sábado (11), no Shopping Cidade Jardim, enquanto crianças se empolgavam com as cenas fofinhas que misturam cartoon com gravações de gente de verdade, mães e pais soluçavam. A criança sem pais é o medo mais presente da maternidade. A gente, quando tem filho, não pode se dar ao luxo de morrer. Ver a garotinha de pink com a chupeta azul me gela a espinha porque eu quero que ela encontre os papais dela (vai encontrar), mas também porque eu sou ela. Como sou a Bea do filme infantil, ensimesmada com suas tristezas mais indissolúveis.
O buraco fundamental
O filme Aftersun, de 2022, coloca esse vazio existencial do "If" de uma maneira menos evidente. Ali, uma garota de 20 e poucos anos relembra sua viagem de férias com o pai na infância. A colagem de cenas é poesia pura: insegurança, depressão, cuidado e carinho em longas tomadas silenciosas nem sempre sequenciais. Curioso, é bem assim que me lembro de meu pai, em uma costura que aprendi a fazer com a memória para poder ficar com alguma coisa que fosse nossa de fato.
Após terminar o filme, escrevi para o amigo que me recomendou perguntando em tom de brincadeira por que ele havia feito aquilo comigo. Eu estava soluçando, completamente despreparada para lidar com o que me causou uma obra sobre a lembrança da presença de um pai agora ausente. Perguntei: "Por que será que isso (a morte de meu pai) aconteceu?". E ele respondeu que gostaria de dizer que era para eu ficar mais forte, como de fato sou, mas a verdade é que ele gostaria que nada disso tivesse acontecido. Ficamos em um silêncio resignado que me levou a pensar que carrego o que chamei de buraco fundamental dentro de mim. Esse buraco é formado de ausência e de todos os "e se..." que nunca serei capaz de concretizar.
A gente, na vida, tem ambições que são possíveis: ter uma carreira de sucesso, ter uma casa, conhecer a Finlândia ou Cuzco. Mas quem fica órfão na juventude cria em si um desejo irrealizável: voltar a conviver. No meu caso, ter uma conversa adulta para sacar de verdade, com olhar um pouco mais apurado, quem era esse cara que me gerou. Tenho evidências, memórias difusas, fitas VHS e histórias que me contam mas, como entrevistadora, sei que falta olhar no olho, ouvir a voz e entender de fato sua personalidade. Pois bem, essa aspiração é impossível e me deixa aqui com o buraco fundamental. Não há modo de preenchê-lo de verdade, então aprendi a viver a vida tentando colocar outras coisas (amigos, amores, conversas e trabalhos) nessa lacuna. Estou aqui, viva e feliz. Mas o meu vazio também vai comigo onde eu estiver.
Na vida real, a tristeza da tragédia no RS acomete mesmo quem nunca viveu algo parecido. Todos os nossos sentimentos no Brasil estão manchados com o barro do Sul. Mas as crianças que ficaram sem pais nos atravessam de uma maneira infinitamente triste pela consciência de todos os "e se..." que ainda virão.
O filme "Solo Dios Sabe" tem uma frase que me acompanha há muitos anos. Alice Braga e Diego Luna atravessam o México de carro, em um daqueles encontros do acaso que deixam o resto do mundo todo pequeno. Em um momento, constatam que ambos são órfãos. "É a irmandade dos órfãos", o personagem diz. Eu já escrevi sobre isso aqui. Olhar o outro e entender sua dor, ciente de que não existe nada ao nosso alcance para melhorar a situação. A frase de meu amigo "Gostaria que não tivesse acontecido isso com você" basta.
Em momentos de extrema tristeza, eu espero que a gente tenha, como a Bea de "Amigos Imaginários", lápis de cor para alegrar um pouco as telas marrons. E saiba criar grandes universos "If" onde a dor não seja tamanha. Eu espero que esse texto te abrace também.
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