Árbitro beijado em campo: "Você espera tudo, xingamento, mas um beijo?"
O Botafogo goleou a Cabofriense por 6 a 2 hoje (28), no Nilton Santos, em partida que marca o retorno dos times após a paralisação do Campeonato Carioca devido à pandemia de coronavírus. Há 13 anos, as equipes estiveram frente a frente para definir o campeão do segundo turno e uma vaga na final do Estadual. Um dos personagens marcantes do jogo, porém, não defendia nenhum dos lados: o árbitro Ubiraci Damásio.
O time de General Severiano venceu por 3 a 1, terminou com um jejum de uma década sem levantar a Taça Rio, e, de quebra, carimbou a vaga na decisão do Carioca contra o Flamengo. Mas a imagem mais marcante daquele confronto foi o beijo que o zagueiro Cléberson, da Cabofriense, deu em Ubiraci.
"Foi uma coisa engraçada. Esse jogo foi um marco para mim. Em minha carreira toda como árbitro, graças a Deus, nunca fui agredido. Passei batido no amador, e olha que peguei um amador pesado, hein! Esperava tudo de um jogador, mas não aquilo (risos). Foi uma partida histórica. Encarei aquela final e Papai do Céu foi bom comigo. Fui bem e ainda ganhei um beijo. Uma coisa inédita, né? Foi uma surpresa porque você espera tudo, um xingamento... Mas um beijo? Ainda brinquei com o cara e disse: 'Você não pode me beijar' e aí pegou mais ainda", disse o ex-árbitro, ao UOL Esporte.
Com bom humor, Ubiraci recorda que nunca mais esteve com Cléberson, o zagueiro "beijoqueiro". "Dizem que ele está na Austrália. Uma vez até brinquei dizendo que tínhamos de nos encontrar porque todo mundo fala sobre aquilo [o beijo]. Mas sempre levei na esportiva".
Cléberson, realmente, reside na Austrália, onde é técnico do Redland, da Segunda Divisão nacional, conforme mostrou recentemente o "Blog do Menon", do UOL Esporte.
A partida de hoje acontece após muita polêmica envolvendo o retorno do Campeonato Carioca. Um dos clubes contrários a uma volta imediata do futebol, o Botafogo retornou aos treinos presenciais no último dia 20 e era favorável à retomada do Estadual apenas em julho.
Ao lado do Fluminense, o Alvinegro chegou a acionar o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RJ) e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) pleiteando um período maior de preparação e um adiamento da data estipulada pela Federação de Futebol do Rio (Ferj), que era dia 22.
Depois de um decreto do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), que chegou a suspender o Carioca, Botafogo e Fluminense tiveram um pequeno ganho e entram em campo hoje, seis dias após a data inicial.
Ubiraci lembra racismo
Em meio às lembranças daquele Botafogo e Cabofriense, Ubiraci deixou o largo sorriso de lado para falar de um assunto que o atinge diretamente: racismo. Ele se recordou de um duelo entre Bahia e São Caetano, em outubro de 1999, pela Série B do Brasileiro, em que expulsou todos os jogadores do banco da equipe de São Paulo, após ser chamado de "Galinha do céu", que em alguns lugares é uma forma para se referir a urubu.
"Esse jogo foi um marco por causa do beijo, mas o que mais me marcou... Se fala muito em racismo hoje, mas o jogo que ficou marcado para mim foi um Bahia x São Caetano que me chamaram de 'Galinha do céu'. Perguntaram 'Galinha do céu apita?'. O banco todo começou a rir, perguntei quem tinha falado e tive de expulsar o banco todo".
A partir deste episódio, com uma voz que denunciava um misto de revolta e tristeza, Ubiraci lembrou de outros casos. Uma vez, usaram o saci, o menino negro personagem do folclore brasileiro, para o atingir. Anos depois, a história se repetiu, mas com um outro desfecho.
"Teve um Fluminense e Botafogo no Juniores, em 92, eu acho, e uma pessoa ficou os 90 minutos gritando 'Ubiraci, filho de Saci'. Fui encontrar esse rapaz 15 anos depois, em Camboci. Fui apitar um Camboci e Resende e o cara começou a gritar a mesma coisa. Logo reconheci a voz. Desta vez, parei o jogo e fui falar com ele: 'Ou o senhor se retrata comigo ou sai daqui preso'. Como pode ser isso? O racismo faz essas coisas. E eu nunca falei nada. Todo mundo fala de racismo, mas ninguém se movimenta", lamenta.
Ele demonstrou ainda preocupação em relação ao que os filhos Marcos Vinicius e João Vitor pode viver ainda. "O árbitro é vidraça, você sabe que está ali exposto aos dois lados. E o racismo se une a isso. Nunca vai acabar, o racismo. Blindei meus filhos para que eles não sofram isso tanto quanto eu sofri. No Rio Grande do Sul, uma vez, fui apitar um Grêmio e Cruzeiro e, na porta do hotel, uma mulher mandou eu pegar a mala dela, porque eu estava há muito tempo parado ali falando ao telefone. Só por eu ser negro. Isso são alguns exemplos do que passamos. É complicado", completou.
Ubiraci aposentou-se dos gramados há uma década e, hoje, trabalha em uma empresa ligada à SuperVia, companhia de trens do Rio de Janeiro. Em um emprego anterior, segundo conta, foi vítima dos próprios colegas e acabou sendo demitido.
"Eu já sofri ataque até no trabalho. Uma vez, fui mandado embora por causa de um filme que passou, o 'A origem' [Planeta dos Macacos], que tem os macacos. Cheguei ao serviço e dois garotos resolveram fazer uma brincadeira de péssimo gosto. O filme tinha passado no dia anterior e, quando cheguei, me falaram: 'Viu seu irmão ontem, como estava', se referindo a um personagem do filme, que era um macaco. Quando eu entendi o que estavam dizendo, os xinguei e fui para cima. Meu chefe viu a cena e fui mandado embora com a alegação de que agredi um colega de trabalho".
Frustração por não ter chegado à Fifa
Ubiraci chegou a ser árbitro aspirante à Fifa, mas nunca alcançou um posto na lista da entidade maior do futebol mundial. Ao olhar para trás, não esconde que errou, mas lamenta o fato de ter sido o único punido.
"Infelizmente, a CBF e as federações fazem o que querem. Falo isso porque fui rebelde. Eu cheguei a ir para a Fifa, mas tive um erro lá atrás. Não tenho vergonha de falar. Fui muito pobre, minha mãe era faxineira. Falsifiquei um diploma e fui crucificado. Eu era garoto, antes de eu ir para o Exército, trabalhávamos em um local e, na época, quem tinha segundo grau, trabalhava de ajudante, que ganhava mais. Eu e meu compadre acabamos fazendo isso. Anos depois, por conta disso, fui crucificado, julgado e perdi a vaga na Fifa. Outros [árbitros que também cometeram erros] não perderam. Eu era negro, pobre, fui estudar depois de velho. Graças a Deus tive a oportunidade de arrumar um emprego e as pessoas que estiveram ao meu lado me ajudaram. Tenho maior orgulho"
Esperava apitar a final do Carioca
Árbitro da final da Taça Rio, Ubiraci esperava apitar a decisão do Campeonato Carioca, entre Flamengo e Botafogo.
"Eu pensei que faria a final. Na decisão do Carioca, fui fazer um jogo em outro Estado e até hoje não entendi. Foi o ano em que me preparei, estava brigando pela vaga na Fifa. Armando Marques [então comandante da Comissão Nacional de Arbitragem da CBF] conversou comigo, mas fez outra coisa. Não tenho nada contra eles [William de Souza Nery e Djalma Beltrami], mas eu estava preparado".
"Vão tirar o preto e o pobre do esporte"
Morador de Higienópolis, bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro, o ex-árbitro ressalta que o futebol ainda é um dos poucos esportes ao qual pessoas negras e pobres têm acesso. Segundo Ubiraci, o conhecimento de quem está na periferia em relação a outras modalidades é prejudicada e isso tem reflexos nas oportunidades que aparecem.
"Uma coisa que eu venho falando é que o futebol ainda é um dos poucos esportes que o pobre e o negro participam. Tem no atletismo também e só. Mas vai acabar. Se os negros não se prepararem, vão tirar do futebol e do esporte. Falo de cadeira. E sabe por que isso pode acontecer? Porque o negro e o pobre sabem as regras [do futebol]. No basquete, para jogar, tem de entender a regra. Vôlei, a mesma coisa, handebol, mesma coisa".
"Não terminei a faculdade por causa de um acidente de carro que sofri... Não vou dizer que era um professor, mas, enquanto cursei, procurei entender de todos os esportes. Cheguei a apitar alguns campeonatos de bairro e é complicado. Os garotos das comunidades não conhecem as regras, só conhecem futebol, entendeu? Pega um garoto na periferia e vê se ele sabe, por exemplo, jogar basquete, se sabe as regras. Como vai ajudar um negro, como vai falar de racismo... Não se vê o esporte nas comunidades, só o futebol"
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