Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Não subestimem a raiva acumulada das mulheres

A gente vive com raiva. Muita, muita raiva. Tomamos o cuidado de não deixar ela sair desorganizadamente porque mulher raivosa apanha, é demitida, é silenciada através de formas que o sistema empacota como "merecida punição por mau comportamento" e, pior, depois acaba envenenada pelo ódio acumulado que estava dentro dela. Boa parte dos nossos dias a gente passa tentando não deixar a raiva sair. De onde vem nossa raiva? Vamos falar sobre isso e vamos compreender o que mudou para que vocês estejam notando essa raiva agora se o sentimento está com a gente há séculos. Nossas mães, avós, bisavós; nossas ancestrais, mulheres em todos os cantos desse planeta.

O mais recente escândalo de misoginia, esse que está fazendo nossa raiva circular, veio com o episódio lançado no dia 16 de Janeiro do podcast "Rádio Novelo". Nele, a escritora Vanessa Barbara conta, com extrema excelência narrativa, o que passou dentro de um relacionamento há mais de dez anos. Até aí, tudo muito corriqueiro não fosse o acusado de assédio psicológico um conhecido e progressista editor de livros. A gente escuta o relato tentando controlar os batimentos cardíacos. A história dela é a nossa história.

O relato piora quando ficamos sabendo que a misoginia era livremente circulada num grupo de emails que reunia 15 integrantes, muitos deles homens considerados aliados. Na época, a turma tinha por volta de 30 e tantos anos. Era, portanto, bastante crescida para saber das violências que estavam sendo compartilhadas nesse troca troca de textos (alguns muito muito longos).

Vanessa, na época uma promissora escritora, enfrentou depressões e teve que lidar com o trauma paralisante do abuso. Entrou no relacionamento como uma jovem cheia de sonhos e desejos e saiu uma mulher apequenada e inundada em cinismo. É a história de todas as mulheres - cedo ou tarde (mais cedo do que tarde).

Não vou me aprofundar aqui nos detalhes do caso. Quem quiser pode escutar o episódio. Quero falar do que acontece com as nossas vidas de mulher dentro desse mundo misógino. O que é feito de nossos sonhos, de nossa inocência, de nossos desejos, de nossos corpos, de nossa integridade moral.

Existe uma raiva do tamanho do universo circulando pela sociedade. Ela tem rosto e corpo de mulher. Ela fecha os olhos e sabe o que aconteceu com seu corpo nos verões passados. Sabe dos abusos, dos assédios, dos silenciamentos. Ela está vestida em traumas e medos. Ela quer vingança, mas entende que não pode se dedicar a isso. Primeiro, porque o mundo é dos que abusaram dela. Segundo, porque ela precisa trabalhar, pagar as contas, cuidar dos filhos, da casa, do marido, dos pais envelhecidos. Quem tem tempo para gastar em planos de vingança? Só mesmo aqueles que podem deixar de lavar a louça e de cuidar do resto da casa alegando que existe muita coisa mais importante a ser feita na vida - como trocar horas e horas de fofocas com os parceiros.

Então, essa raiva coletiva, acumulada e represada, vem à tona a cada exposed. É na figura do novo acusado que descontamos nosso ódio apinhado. É injusto? Quem pode dizer? Eu prefiro achar que injusto é que uma história tão dilacerante como a narrada por Vanessa Barbara seja resumida a um "como monetizar um chifre", como vi colocarem num grupo de WhatsApp. Injusto é viver num mundo onde, a cada seis minutos, uma de nós é estuprada. Quando você acabar de ler esse texto, mais de uma mulher terá sido.

A narrativa está para a verdade como uma roupa larga está para o corpo, li uma vez. O que Vanessa Barbara conta é uma história de infinitas camadas de violências. O orquestramento de um abuso psicológico. A fabricação e a introjeção da ideia de loucura dentro de seu corpo jovem, uma trama em muitos e diferentes atos.

Alguns agora alegam não terem participado. Estavam em cópia, mas não se meteram. E explicam que o grupo falava de outras coisas: cultura, arte, gastronomia, ciência. Entendo a tentativa de se poupar, mas não se meter é também participar da violência. E, se a misoginia circulava, não importa que, nos intervalos, tratassem de astronomia, da descoberta de um novo planeta, de buscar a cura do câncer. Segue sendo igualmente violento para mulheres em qualquer lugar do mundo que haja um grupo dentro do qual homens nos objetifiquem, genitalizem, coisifiquem.

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Tudo o que temos pedido aos suposto aliados - e aqui a palavra suposto está sendo empregada com esmero - é: metam-se. Metam-se ao perceberem o machismo passando por vocês. Metam-se. Metam-se pelo amor de Deus. Calem o amigo misógino. Interrompam o círculo de violências. Ajudem a gente a sair desse estado miserável de coisas.

Resumir nossas histórias ao "trauma de um chifre" é perpetuar esse caminho de violências. Essa não é uma história sobre traição, sobre chifres, sobre amores que terminam. Divulgar que seja uma história singela sobre mais uma mulher traída é, de duas, uma: ou tentativa pequena de confundir propositalmente a opinião pública ou uma incrível incapacidade de cruzar a fronteira que vai do simples para o complexo.

Para homens monodimensionais a interpretação pode mesmo ser "foi só um chifre". Seria preciso um entendimento mais humano, composto, associativo e decente para compreender o que aconteceu.

Para quem está dentro da trama, implorando pela verdade sem saber que estamos nas mãos de grupos de amigos que compartilham com deleite fofocas a respeito de nossas vidas, de nossos órgãos sexuais, das formas como gozamos enquanto se divertem como crianças com o troca troca, é uma espécie de morte.

Nessas condições, uma mulher que passa por abuso psicológico (o gaslighting é um deles) não exatamente "invade a privacidade do ex", como alguns tentam contra-argumentar. Ela apura. Ela vai em busca da verdade que pode interromper o processo de devastação moral pelo qual está passando. Essa não é uma história sobre invasão de privacidade. É uma história sobre tentar sobreviver.

Evitem a tentação de seguir construindo narrativas para uma trama que se revela absolutamente clara, evidente, escancarada. O arrependimento honesto não carrega com ele justificativas anexadas ao pedido de desculpas. Parem. Reflitam. Busquem um lugar de honestidade dentro de cada um de vocês para compreender o que já fizeram, com quais grupos misóginos já compactuaram e por que. Não esperem que o próximo escândalo venha à tona para pedir desculpas. Peçam agora. Hoje. Imediatamente. Qualquer investigação honesta feita por homens com mais de 30 anos vai levar a um lugar de alguma dolorosa reflexão em relação a comportamentos prévios direcionados a mulheres.

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E não foquemos no tempo. O tempo está a favor do abusador. O tempo não recupera nossa integridade, nossa inocência. Não importa quando um caso de violência de gênero aconteceu. Para uma mulher, ele se repete diariamente, ele vive em nossa carne, em nossas mentes. Focar no tempo é beneficiar a misoginia. Focar na dor, na vida interrompida, na cicatriz é pensar em quem tem direito ao cuidado e à reparação.

Mas vejam que curioso: o mesmo machismo que nos mata pode ser uma atenuante para o comportamento absolutamente infantil exibido em algumas mensagens reveladas nesse mais recente exposed.

Homens são criados para agirem nesses termos. Usem esse argumento como boia, evitem o abraço do afogado que só vai fazer vocês soarem fracos e desesperados, engulam a vontade de apresentar justificativas e de fazer ameaças sobre privacidade violada ou, pior, sobre a própria dor de vocês e voltem para a superfície com ações concretas para nos ajudar. É dono de uma editora? Aumente consideravelmente a publicação de obras de autoras. É muito rico? Crie um instituto para promover a criatividade feminina. Faça qualquer coisa para evitar que sigamos sendo apagadas, silenciadas, ofuscadas, interrompidas.

Morremos. Mas também renascemos, verdade. Só que já não somos as mesmas. A gente está inundada em raiva e eu, se fosse vocês, não subestimaria essa raiva.

Sabemos que não temos as mesmas chances profissionais, que não ganhamos os mesmos salários em uma mesma função, que o mundo dos homens celebra a si próprio com a indicação de amigos para cargos de poder a despeito de não terem condições de ocupá-los, que a cultura heterossexual masculina é masturbatória. Vejam, isso não é argumento retórico. É a dinâmica da cultura heterossexual dos homens. Há exceções, obviamente, mas exceções não contam a história de uma cultura. Além disso, o cara que se sabe exceção não está preocupado em dizer isso, em justificar coisa alguma. Ele não levanta a mão para berrar "nem todo homem". Ele lê um texto como esse sem se sentir ofendido e segue na luta, de dentro para fora, por um mundo menos misógino.

Por que a cultura heterossexual masculina é masturbatória? Porque o troca troca de detalhes sobre nossas vidas sexuais é uma escancarada dinâmica erótica entre homens. O que isso significa para os homens que se envolvem nesse troca troca? Não sei. Mas o que significa para a gente? Objetificação. Genitalização. Coisificação.

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E o que isso quer dizer?

Que, como objetos, como coisas, como um órgão sexual, nós somos usáveis e descartáveis. Abusáveis. Assediáveis. Silenciáveis. Matáveis.

Então, o que para homens é uma farra de alto conteúdo homo-erótico, para a gente é o fim de uma existência. Não pode ser difícil de entender. Especialmente para homens tão inteligentes.

Eu acredito na transformação das pessoas. Acredito em verdadeiros aliados. Prefiro um ex misógino reformado do que cancelado. Acredito no arrependimento. Acredito em homens que estão do nosso lado em nome de um mundo mais igualitário. Mas estamos cansadas de pedidos de desculpas vazios e protocolares que não são seguidos de ações. Cansadas de ver o clube do bolinha se lamber, se promover, se celebrar. Cansadas de sermos ridicularizadas e objetificadas.

Vanessa Barbara é jovem e, como muitas de nós, está nessa trilha por se reencontrar. Mas não resta dúvida de que sua carreira foi precocemente interrompida. Isso não quer dizer que tenha existido uma trama meticulosamente planejada entre os caras para acabar com a vida dela. Homens não precisam tramar nossas mortes simbólicas. O sistema faz isso por eles. Eles precisam apenas fazer circular a misoginia, mesmo como piada.

Quantas de nós ficamos pelo caminho porque nossas histórias foram sufocadas? Quantos talentos perdemos para a pequenez da masculinidade adoentada-porém-unida que nos reduz à cama, ao secretariado doméstico e à cozinha? Quantas de nós ainda precisarão morrer para que toda menina possa crescer sem medo de existir em corpo de mulher?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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