Milly Lacombe

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Tragédia em Los Angeles mostra que os ricos não vão escapar do fim do mundo

O que estamos vendo acontecer em Los Angeles nenhum filme de apocalipse de Hollywood foi capaz de prever. Desde o dia nove de janeiro, fogo e vento fizeram um dueto macabro, deram à luz furacões incendiários e queimaram uma área maior do que a totalidade da ilha de Manhatan em Nova York. Enquanto digito essas linhas, na tarde de 11 de janeiro, o fogo segue se espalhando.

Trata-se de uma região bastante propensa a queimadas por causa do ar seco e quente. Chuva por lá é coisa rara, bastante rara. Morei por quase oito anos em Sherman Oaks, Los Angeles, e nunca precisei comprar um guarda-chuvas. O Sol teima em brilhar e até mesmo enxergar uma nuvem no céu é evento singular.

Lidar com incêndios é parte do cotidiano californiano. Mas o fogo tem sido mais frequente, mais intenso e, agora, ocorre fora de época. O período de risco é sabidamente o verão quando o ar é mais quente e seco e a vegetação adquire características alarmantemente inflamáveis. Dessa vez, no mais destruidor dos incêndios, estamos no inverno.

É de se imaginar que, sabendo de todos esses riscos, o orçamento estatal de combate a calamidades estivesse aumentando consideravelmente. Tudo investido em uma força de bombeiros bastante treinada e rigorosamente equipada. Aviões, formas de acumular água, que é escassa por lá, preparação, prevenção, treinamento, rotas de fuga.

Mas não. Os cortes no orçamento estatal de combate a incêndios para o ano fiscal 2025-2026 chegam a 100 milhões de dólares. O governador californiano argumenta que em seu mandato o orçamento de combate a catástrofes cresceu, o que é verdade. Mas o corte proposto em 2024 também é real e Trump e sua turma usarão o número para promover um espetáculo macabro, culpar os democratas californianos e, assim, poupar os verdadeiros responsáveis, amigos do peito e irmãos camarada: a indústria do petróleo.

Vejam: o risco de um incêndio florestal sem precedentes era tão fartamente sabido que algumas seguradoras se recusaram a renovar milhares de apólices de seguro nos últimos meses. Uma crise que vai explodir mais uma bolha assim que o fogo for controlado e as contas começarem a ser feitas.

No neoliberalismo, exigir que o estado cobre impostos altos - ou qualquer imposto a bem da verdade - é uma ofensa. Esqueçam esse negócio de cuidarmos juntos do bem comum. É cada um por si. É meritocracia. É austeridade fiscal.

Vamos fazer o seguinte: Precisamos de bombeiros, claro, mas não queremos gastar com isso. Que tal se a gente fizer com que quase metade do corpo de bombeiros seja composta por presidiários?

Palmas.

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Na Califórnia, o sistema carcerário oferece aos detidos a chance de ir combater incêndios na linha de frente. Quem quiser arriscar a vida sem o devido treinamento, vai ter a pena levemente abrandada e ainda ganhar cinco dólares por hora. Quem aí quer correr o risco de morrer sufocado ou queimado?

Nesse sistema, quanto mais pessoas presas, melhor. Existe uma variedade de trabalhos que essa turma pode executar se quiser sair antes da jaula. Vejam, a iniciativa privada está envolvida nessa história de administrar presídios. São gestores. Uma gente que entende do negócio.

Sabe aquele dinheiro que cortamos do combate a incêndios? E se a gente jogasse um tanto para equipar as forças policiais? Boa ideia. Mais presos, mais mão de obra barata.

Palmas.

Assim foi feito. Assim tem sido feito. As policiais do mundo inteiro têm virado verdadeiros exércitos prontos para combater o inimigo. Quem é mesmo o inimigo? As populações vulneráveis.

No dia 11 de janeiro, assisti à coletiva de imprensa na qual o chefe da LAPD disse que vai prender qualquer um que estiver zanzando pelas áreas afetadas, sugerindo que a calamidade é um convite à criminalidade. Ele tem razão. Numa cidade tão socialmente desigual como Los Angeles, com quase 50 mil pessoas em situação de rua (no condado de Los Angeles são 75 mil), é mesmo. Roubar propriedade chamamos de crime. Roubar da população o direito a um farto orçamento de combate a incêndios chamamos de responsabilidade fiscal.

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Um estudo mostra que as áreas consumidas por incêndios florestais na California aumentaram mais de 400% entre 1972 e 2018. O mesmo estudo indica que o aumento se dá por causa do aquecimento global. Diante desse cenário, cortar orçamento de combate a incêndios me parece ato criminoso.

Quem não gostou do corte do orçamento de combate a incêndios a nível municipal (cerca de 23 milhões de dólares) foi a chefe dos bombeiros de Los Angeles, que registrou a queixa formalmente em documento avisando que as ações de sua instituição diante da necessidade de combater incêndios florestais ficaria comprometida. Agora, essa mulher está tendo que explicar em rede nacional de TV o que é óbvio: não há equipe, treinamento e material suficientes para combater os incêndios.

Aqueles que podem pagar por bombeiros privados assim o fazem. Vinha dando certo para muitos super-ricos até os incêndios que começaram no dia 9 de janeiro de 2025. Dessa vez, milionários e bilionárioos que lutam para pagar cada vez menos impostos não foram capazes de privatizar sua salvação e estão vendo suas mansões arderem em chamas. O fim do mundo se anuncia democrático.

Até aqui são 180 mil pessoas deslocadas de seus lares em Los Angeles e mais de 10 mil casas e estabelecimentos destruídos pelo fogo.

A previsão do tempo diz que os ventos vão se intensificar a partir desse domingo, 12 de janeiro. Menos de 12% dos incêndios estão controlados. A coisa, que já está bastante trágica, pode piorar. A Cidade dos Anjos virou um dos círculos do inferno.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

47 comentários

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Franklin Antonio Campos

Milly, esse foi o seu melhor texto, ever!

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Denilson Aparecido da Silva

É Milly, o futuro tá cada vez mais sombrio. Essas catástrofes só irão aumentar, já que os governos principalmente das grandes potências não estão dispostos a abrir mão de nada.

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Francisco Alves de Assisneto

Perfeita sua definição de responsabilidade fiscal. É em nome dela que a Faria Lima condena à miséria milhões de brasileiros. Quem governa o mundo hoje, infelizmente, é o capital financeiro. “Roubar da população o direito a um farto orçamento de combate a incêndios chamamos de responsabilidade fiscal.”

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