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Grande ideia

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De Olho na Quebrada virou observatório de violência e saúde de Heliópolis

24 set. 2014 - Vista de drone da comunidade de Heliópolis - Rubens Chaves/Folhapress
24 set. 2014 - Vista de drone da comunidade de Heliópolis Imagem: Rubens Chaves/Folhapress

Paula Rodrigues

De Ecoa, em São Paulo

09/11/2020 04h00

Em Heliópolis, na zona sul de São Paulo, 89% de chefes de família da região estavam com medo da comida acabar em casa antes de poderem abastecer novamente a despensa. 67% diziam ter reduzido a quantidade de alimento no prato durante a pandemia. E apenas 51% das famílias estavam conseguindo comer três vezes ao dia. Ao todo, 711 pessoas foram ouvidas pela pesquisa entre 24 de abril e 29 de maio.

Todos esses dados foram coletados pela região e organizados no edifício de fachada colorida que serve de sede da UNAS - União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região. É lá que o Observatório de Olho na Quebrada tem monitorado a região. O projeto mapeia a região olhando para diversos pontos: violência policial, pontos de comércio, saúde mental, saúde alimentar, Internet, entre outros.

"Eu sempre bati na tecla de que tinha que ter um projeto para o jovem aqui porque é uma lacuna muito louca, né? As crianças começam a ser atendidas desde a creche até o CCA [Centro para Crianças e Adolescentes], que atende até os 14 anos. Depois disso, acaba. Depois dos 15 anos, o cara fica largado até começar o processo profissionalizante aos 18. Eu sempre cobrei o Reginaldo sobre isso. Até que um dia ele falou que ia rolar o processo seletivo para esse novo projeto de coleta de dados" conta o estudante de produção musical João Victor, um dos pesquisadores do Observatório.

O Reginaldo citado é Reginaldo José Gonçalves, coordenador de projetos da UNAS. Quando a união de moradores idealizou o Observatório de Olho na Quebrada, ele ficou responsável por começar a colocá-lo em prática. Do processo seletivo que abriu, 25 jovens se interessaram. Faz apenas um ano que Karoline Aparecida, Gabriel Feitosa, Gabrielle Souza, Leticia Avelino, Leonardo da Silva Pimentel e João Victor foram escolhidos.

A ideia de começar a coletar dados surgiu basicamente por dois motivos. O primeiro foi a vontade de mapear quantos equipamentos públicos a região realmente tinha. Já o segundo veio de um incômodo em relação ao número de habitantes de Heliópolis de acordo com órgãos oficiais. Segundo o Censo 2010, a região possui 41,118 mil habitantes. Já o Observatório trabalha com o número de 200 mil habitantes.

"Quando você vai escrever projetos sociais em editais ou vai atrás para exigir políticas públicas, esse número é muito importante. Dependendo dessa quantidade de pessoas é que você consegue pressionar o poder público em relação à magnitude da ajuda e do investimento na área", explica o coordenador. Atualmente, o Observatório trabalha com a quantidade de 200 mil pessoas vivendo em Heliópolis.

"Se você pega os dados de quantas pessoas têm aqui, é isso que dita quantos equipamentos públicos o lugar precisa ter. A mesma coisa com postos de saúde. Só que hoje as políticas públicas estão sendo feitas para 40 mil pessoas, então 160 mil estão desassistidas", diz João Victor. Dados apontados pelo Mapa da Desigualdade de 2020, lançado em outubro deste ano pela Rede Nossa São Paulo em parceria com Programa Cidades Sustentáveis, dão sinais de que o rapaz tem motivos para pensar assim. Para cada cem mil habitantes do distrito do Sacomã (onde fica Heliópolis), existem 1,3 equipamentos de cultura municipais ou estaduais, como museus, casas de cultura, teatros ou bibliotecas, por exemplo.

Nem Reginaldo, nem os jovens tinham experiência com dados. Todos aprenderam com o projeto. Por isso, o educador Aluízio Marinho, especialista em Gestão de Projetos Culturais, foi convidado a fazer parte do grupo, na intenção de auxiliá-los especialmente com a capacitação dos meninos e meninas do Observatório, os ensinando desde leitura de mapa até metodologias de pesquisa. Mais duas pessoas de fora chegaram para contribuir: a psicóloga Isabela Lemos e o designer gráfico André Shazam.

O começo dos trabalhos ocorreu em 2019. Juntos, reuniram-se em uma das salas da UNAS Heliópolis para começar a decidir quais seriam os caminhos iniciais a serem tomados pelo Observatório. "Foi legal porque o Aluízio não começou a ensinar as coisas para gente. Ele sentou todo mundo na cadeira e falou: o que vocês veem por aqui? E como vocês se veem?", conta Karoline Aparecida, também pesquisadora do grupo e estudante de medicina.

Passaram, então, a identificar características do território. Andar pelas ruas e depois encarar um mapa da região para apontar onde acontecia o baile funk e onde tinha mais comércio, por exemplo. Assim seguiam dizendo qual região tinha isso, qual região tinha aquilo.

Enquanto faziam esse trabalho, perceberam que conseguiam também identificar quais lugares eram mais perigosos que outros, onde geralmente acontecem mais enquadros da polícia. Assim, acharam a primeira pauta para começar a pesquisar: violência policial contra moradores da região.

Todos os boletins de ocorrência que envolviam moradores de Heliópolis entre 2013 até 2019 foram analisados por eles. Karol foi uma das responsáveis pelo trabalho. Por meio dos documentos, encontraram 37 mortes. Sem dúvidas, para Karoline, esse foi o dado que mais a chocou. Não por estranhar a quantidade de pessoas que perderam a vida por causa de intervenções policiais, mas pela banalidade como a vida das pessoas foram tratadas. 80% dos mortos estavam desarmados. "Aí no boletim aparecia a descrição da casa, a cor da fachada, ou qual era a marca do carro ou moto que a pessoa tava, mas sobre a pessoa mesmo não tinha nada", diz.

O segundo passo do projeto foi pensar como as pessoas de fora viam Heliópolis. "Daí vimos que nos mapas, por exemplo, o Helipa é uma área verde sem nada. Toda complexidade que a gente tinha visto no primeiro momento sumiu para os caras. O IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] chama a gente de 'aglomerado subnormal'. Bem preconceituoso, né? Então a gente pegou o mapa mais antigo da UNAS e aí pensamos em dividir o lugar onde a gente mora do jeito certo", diz João.

Ao todo, hoje, o local tem um milhão de metros quadrados. Os jovens dividiram essa totalidade territorial em sete zonas. As chamam de: Imperador/Pilões, Heliópolis, Cohab, Paquistão, Lagoa, Mina e Redondinhos João Lanhoso.

Ter o mapa decorado ajudou na hora de sair para a rua. Cada um vai para uma região diferente quando estão realizando alguma pesquisa. Nessas andanças, também aproveitavam para realizar um outro trabalho que o Observatório começou a fazer: o resgate da memória de Heliópolis. Considerada a maior favela de São Paulo, a história da região começa oficialmente em 1942, quando a posse das terras passou para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários - IAPI (que depois viraria IAPAS - Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social).

Anos mais tarde, na década de 1970, famílias despejadas da Vila Prudente e Vergueiro foram mandadas para morar provisoriamente em alojamentos na região. Nunca mais sairiam de lá, porém, dando início a uma série de lutas, especialmente por moradia e contra desapropriações em Heliópolis. Seguindo a história de todas as outras favelas do Brasil, Heliópolis se ergueu com a força do coletivo realizando mutirões de construção entre os moradores para subir as casas.

"Teve uma primeira geração de moradores aqui que começaram a entender que direito à moradia não era só ter um teto para viver, era também ter acesso a água, luz, educação, cultura, saúde? Heliópolis foi se construindo por causa das pessoas daqui. Os moradores que correm atrás de tudo que a gente tem aqui hoje. Foi muita luta mesmo. E hoje nós temos uma nova geração que não conhece muito bem esse começo de desafios, lutas e conquistas", diz Reginaldo.

Pensando nisso, os jovens do Observatório vêm reunindo diversos depoimentos de moradores mais antigos. Alguns deles estão expostos em uma árvore pintada na parede do prédio da UNAS. Eles pretendem aos poucos adicionar todos os acontecimentos da região. Os negativos estão pintados como folhas mortas. Os positivos aparecem em folhas verdes vivas. Assim que a pandemia acabar, os pesquisadores e educadores do projeto querem espalhar toda essa história por muros do Helipa.

Acho importante o resgate da memória para mostrar que tudo que eles têm hoje não caiu do céu. E que se eles não continuarem lutando a gente pode perder tudo isso. Hoje tem energia, tem água, tem saneamento básico, que são direitos básicos. Mas quando você é de periferia, se você não continuar lutando, não consegue acesso a esses direitos. Tudo isso é para mostrar para essa nova geração a importância de lutar pelos direitos deles e nossos como comunidade.

Reginaldo José Gonçalves, coordenador de projeto da UNAS Heliópolis e do Observatório de Olho na Quebrada

Atuação em campo, virtual e em parceria

A vida do Observatório, como define Reginaldo, é dividida em antes e depois da chegada da Covid-19 no Brasil. Se anteriormente, eles conseguiam fazer esse trabalho na rua, agora precisaram usar o Whatsapp e páginas com pesquisas online para os moradores responderem. As questões a serem mapeadas em Heliópolis surgem em reuniões semanais que realizam na UNAS e, durante a pandemia, virtualmente.

O método de pesquisa utilizando o conhecimento local dos próprios moradores já abriu os olhos de algumas universidades. A pesquisa sobre saúde alimentar citada no começo deste texto foi construída em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Reginaldo conta como a instituição de ensino e o Observatório de Olho na Quebrada trabalharam juntos. "Eu lembro que na primeira vez que a gente trabalhou em conjunto, eles mandaram questionário com 46 perguntas, e a gente sabia que para a nossa realidade era muita pergunta, o povo não ia responder. Reformulamos o questionário e eles gostaram."

Para o coordenador, trabalhos como esse além de reforçar a capacidade de produção de dados mais regionalizados, reforçam a importância do contato direto entre a academia e moradores que conhecem melhor os locais onde residem. "É a necessidade de valorizar os diversos saberes, né? O acadêmico, o empírico, o histórico", completa Reginaldo.

Pensando na aplicabilidade do projeto, o desenvolvimento dos trabalhos só é possível com ajuda da Open Society, que financia o projeto. Do Instituto Construção, que é responsável pela formação técnica dos jovens e da parceria da ActionAid, organização não governamental que trabalha por justiça social, igualdade de gênero e fim da pobreza que é parceira do projeto.

"A escassez de recursos é um desafio estrutural não só para o OQ [Observatório de Olho na Quebrada], como para grupos de outros territórios, que mesmo interessados enfrentam desafios materiais para realizar com dedicação um trabalho como esse. Desta forma, acredito que ele tem uma enorme potencialidade de ser replicado, mas o apoio permanente com doação e recursos de diferentes setores da sociedade é uma variável determinante para garantir engajamento, mobilização e capacidade de realização das juventudes", Carolina Coelho, assistente de Programas da ActionAid, tem acompanhado o Observatório de Olho na Quebrada de perto.

O destino dos dados

"Quando você fala em pesquisa, o povo já fica com pé atrás porque acha vai perder tempo. Também sempre tem a pergunta: vou ganhar quanto para fazer isso? Ou seja, ainda temos todo um trabalho de explicar que não vão ganhar dinheiro para responder a pesquisa, mas que as pessoas vão ter retorno com a melhoria da qualidade de vida em Heliópolis. São com esses dados que vamos atrás de cobrar os governantes para melhorar as coisas aqui, que vamos atrás de políticas públicas", diz Reginaldo.

Um exemplo prático disso aconteceu com a própria Unifesp. Após os resultados da pesquisa que fizeram juntos sobre alimentação na pandemia, tanto a UNAS quanto a universidade mudaram sua abordagem em relação à distribuição de alimentos. Reginaldo conta que, com os dados coletados, conseguiram entender quais alimentos as famílias mais precisavam. "Ao todo já conseguimos atender mais de 30 mil famílias", afirma o coordenador.

Todos os resultados das pesquisas realizadas pelo Observatório de Olho na Quebrada são usados pelos participantes do projeto como ferramentas para conseguir compreender quem eles são e o que eles querem como Heliópolis, mas também como "armas para cobrar o governo. E quanto mais dados a gente tiver, quanto mais pesquisas gente fizer... Isso é potência! Porque a gente pode falar: ó': 200 mil moradores falaram tal coisa sobre esse problema, o que vocês vão fazer?'", exemplifica Karoline.

Como representante de organização que pensa em melhoria para problemas sociais, Carolina Coelho encara uma "experiência de aprendizado" poder descobrir as demandas de Heliópolis por meio dos moradores "já que também vamos observando as necessidades reais de quem acompanhamos. Isso revigora nosso olhar sobre o que é fundamental para um trabalho como o do OQ se manter vivo, levantando por exemplo o debate do direito à internet como algo básico a ser garantido e financiado. "

Para os participantes do Observatório de Olho na Quebrada, ter em mãos os dados do que falta em cada favela do Brasil é o primeiro passo para saber o que cada uma mais precisa, onde governos e organizações precisam investir mais. João Victor resume assim:

É a gente que vive aqui que vai ditar o que a gente precisa. Ninguém melhor que a gente para dizer. Toda comunidade é diferente, mas ao mesmo tempo, todas precisam de igualdade, e para ter essa igualdade é preciso atender a particularidade de cada um. Por isso, o meu sonho é que cada lugar tenha um Observatório para mapear tudo e mostrar precisa.

João Victor, pesquisador do Observatório de Olho na Quebrada.

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