Largue os stories. Melhor é ler, ouvir, criar, viver uma história
Entendo bem o apelo, há dias distraídos em que ele se apodera de mim irreparavelmente. Passo meia hora na rede, não a que balança o corpo com suavidade, mas a que mareia a mente, e experimento todo tipo de emoção instantânea, me divirto, me comovo, me assombro, me horrorizo, me enterneço. Em poucos minutos incremento meu mundo das mais variadas maneiras: aprendo a fazer um arroz de costela, desenho um barco a partir do algarismo quatro, replico com exatidão as principais interjeições em francês, festejo com atraso a performance de uma holandesa no revezamento misto dos quatrocentos metros rasos. Depois me desconecto, alijado de mim, vazio de ser, e tudo esqueço de imediato.
O desafio tem se posto ali mesmo, na algazarra das redes, e poucos têm conseguido vencê-lo. Tratar de lembrar ao menos cinco dos conteúdos aleatórios que se viu na internet em minutos muito recentes, ou responder com precisão a última coisa que se leu. É surpreendente que falhemos, mas falhamos miseravelmente, e a culpa não chega a ser nossa. O caso é que a experiência que se oferece nesses espaços irreais é contrária à permanência, à recordação, a qualquer assimilação verdadeira: não é, na verdade, experiência nenhuma. O que se vivencia é um grau extremo de dispersão, de fragmentação do pensamento. É tal o bombardeio de informações que pouca opção nos resta: nos deixamos aniquilar por esse excesso, ou esquecemos para nos salvarmos.
O que nos move parece ser uma insatisfação perene, um desejo insistente de ver mais, ouvir mais, rir só mais um pouco, quem sabe chorar mais uma vez. Porque cada mísero vídeo ou foto ou notícia ou comentário resulta insuficiente, um pouco aquém do prazer, é que precisamos permanecer ali só mais um instante, um último minuto antes de trabalhar, dormir, sair para encontrar alguém. Os stories se parecem com histórias sem nunca chegar a sê-lo, e assim não são capazes de saciar tantos anseios. Sobra-lhes informação, falta-lhes continuidade, profundidade, sentido. Por isso sabemos tanto sobre as banalidades do mundo, e sobre a nossa vida nos vemos cada vez mais perdidos.
Cheguei a tais pensamentos um tanto pessimistas lendo o livro recentíssimo de Byung-Chul Han, "A crise da narração". Nele, o filósofo coreano radicado na Alemanha recupera o passado de um problema longevo, mas também o atualiza para o ruidoso presente. "O uso inflacionário de narrativas revela uma crise narrativa. Em meio a um barulhento storytelling, há um vácuo narrativo que se manifesta como um vazio de sentido e como desorientação", é o que ele diagnostica. "O forte apelo às narrativas aponta para sua disfunção".
Volta sua retórica contra os meios eletrônicos, sim, mas não perde de vista o mais vasto capitalismo e seu vício da venda de histórias, do storyselling, fenômeno patológico de nossa época. Soma a eles a sucessão de instantâneos que constituem os stories, incapazes de constituir narrativa nenhuma, e também os selfies, que existem apenas como registros efêmeros sem jamais chegar a compor qualquer mito durável de um eu. Arremata com a cultura do like, a alterar os rumos da arte em nome de um agrado, afastando-a ainda mais da busca do shock, do inquietante, da perturbação transformadora. Eis, para ele, o sujeito contemporâneo, ou melhor: o Phono sapiens.
Mas se tudo isso se concebe como crise, e não como destino inelutável de tal sujeito, ainda pode haver superação ou saída. Contra o excesso de micronarrativas que carecem de gravidade ou mistério, Byung-Chul Han prescreve a necessidade de retomar o hábito das narrativas profundas, lentas, completas. Numa narração que se preze, clássica ou moderna, há desfecho, há uma ordem fechada que cria significado. Uma narração produz de fato comunidade, pressupõe a atenção plena de uns quantos ouvintes. Uma narração vincula, associa acontecimentos subordinando-os a algum sentido, recompondo assim a interioridade que se perdeu. Uma narração é uma força contra a desintegração do tempo, contra o presente absoluto, contra a dissolução do passado e a negação do futuro.
A narração é, então, tudo o que a vida nas redes nos renega, ainda que ela pareça nos propiciar emoção e surpresa. Daí o torpor que sentimos ao deixar de lado o celular, daí o mal-estar que nos toma quando fechamos os olhos, talvez arrependidos, empanturrados de tantos risos bestas, tantas comoções vazias. Que venha então a náusea por todo esse despropósito que consumimos, e que nos conduza a um novo movimento, mais ao fundo, mais adentro. Não estão nas telas, estão nas ruas, nos corpos, nos sussurros alheios, nas memórias de outro tempo, nas mentes em silêncio, as histórias de que tanto carecemos.
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