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"Fé evangélica é das mulheres negras e pobres. Bancada não nos representa"

A jornalista Nilza Valéria Zacarias fundou a Frente Evangélica pelo Estado de Direito - Arquivo pessoal
A jornalista Nilza Valéria Zacarias fundou a Frente Evangélica pelo Estado de Direito Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa

27/06/2021 04h00

"A fé evangélica é, sobretudo, uma fé de mulheres negras, pobres e periféricas. Uma Bancada Evangélica composta por homens brancos, ricos e que não defendem o interesse dos pobres não nos representa."

Quem diz isso é a jornalista Nilza Valéria Zacarias, de 50 anos. Há seis, durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ela fundou ao lado de amigos que compartilham a mesma fé a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, uma organização que atua em todos os estados do Brasil, especialmente nas periferias, onde, afirma Valéria, está concentrada a maior parcela dos fiéis.

"Na época, dizia-se que o golpe era gospel, tinha aquela figura do Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara dos Deputados] muito forte, um apoio muito forte da bancada evangélica, e nós nos incomodávamos muito com isso. A Bancada não representa a massa evangélica brasileira — que gira em torno de 30% da população do país, segundo o Datafolha —, representa apenas o interesse de igrejas que funcionam como verdadeiras corporações."

O grupo escreveu um manifesto, que recebeu milhares de compartilhamentos, e logo organizou o primeiro ato, que reuniu centenas de pessoas na Sala dos Estudantes, na USP (Universidade de São Paulo). Dias depois, o impeachment foi aprovado e a Frente Evangélica pelo Estado Direito nasceu oficialmente.

Hoje, o grupo é comandado por Valéria e pelos pastores Ariovaldo Ramos e Anivaldo Padilha. Entre as principais pautas da Frente, estão combater a violência policial, o racismo e a violência contra a mulher, além de disseminar um discurso progressista entre os fiéis.

Isso tudo tem a ver com a fé protestante, que é uma fé de vanguarda, mas que foi desvirtuada por líderes inescrupulosos. Nosso desafio é esse: recuperar o que a fé protestante tem na sua essência.

"Não há diálogo possível com a bancada evangélica"

Entre as principais atuações da Frente Evangélica pelo Estado de Direito estão organizar rodas de conversa com fiéis nas periferias para falar sobre direitos, políticas públicas, combate à violência e, mais recentemente, prevenção à covid-19, por meio do uso de máscaras, do isolamento social e da vacinação.

Além disso, o grupo se articula politicamente pela garantia de direitos humanos, mas Valéria afirma que não existe nenhum ponto de convergência com a bancada evangélica do Congresso. "Quando pressionamos por uma política pública, pressionamos o Congresso, mas não há diálogo possível com a bancada evangélica." Segundo ela, esse grupo de parlamentares não pode ser entendido como porta-voz da massa evangélica brasileira.

Ninguém pode falar por todos os evangélicos. Nossa forma de constituir a religiosidade é diferente dos católicos, por exemplo, porque eles têm uma linha hierárquica, sendo o Papa a figura maior. No segmento evangélico, isso não existe, cada denominação, cada grupo, é autônomo. Então não se pode dizer que evangélicos estão apoiando algo como um todo.

Questionada sobre a linha que separa religião e atuação política, Nilza é assertiva ao responder que este limite é o mesmo que separa a vida pessoal da vida pública — e que tenta explicar essa distinção para todas as pessoas que compartilham a mesma fé que ela.

"Há uma diferença entre ser conservador na vida pessoal e na vida pública. Elementos da pauta moral podem ser importantes dentro de uma comunidade de fé, mas não podem não podem virar regra e muito menos lei de uma nação. Para a bancada, essa separação não existe", afirma. "Não queremos um Brasil evangélico, queremos um Brasil que tenha saúde, educação, segurança e qualidade de vida — e queremos isso para todos."

Passar políticas públicas de base evangélica é um desvio da concepção de estado laico. Se a população é vista com integralidade, os evangélicos serão contemplados, não importa se somos 5%, 30% ou 60% da população.

"Temos denunciado com cada vez mais frequência casos de racismo estrutural, especialmente ligados à violência policial. Primeiro, porque não é possível comungar da fé em Cristo sem enfrentar esse problema. Segundo, porque esses os negros que estão morrendo nas favelas são filhos das mulheres das igrejas."

"Ostento o titulo de mãe de um médico negro"

A religião é fator importante na vida de Nilza mesmo antes dela nascer: sua família é evangélica há pelo menos três gerações, e ela diz que foi a fé que levou a geração de sua mãe, que chegou perto de viver na miséria, ao ensino superior.

"Minha família sempre teve na fé a motivação para sua transformação. Meus avós vieram de Macaé para o Rio de Janeiro para fugir de uma situação de miséria e, aqui, a igreja foi o grande apoio que encontraram. Uma comunidade de fé funciona quase como uma família: um vai fortalecendo o outro."

"Incentivado pelo pastor dessa igreja, que tinha uma visão muito boa sobre educação, meu avô estimulava os filhos a estudar. Meus tios, que vendiam bala no trem, chegaram ao Ensino Superior. Minha mãe se formou em letras já casada e com filhos. Essa consciência foi fundamental, passou para a minha geração e eu passei para os meus filhos. Hoje, ostento com muito orgulho o título de mãe de um médico negro, num país em que a maior parte da população nunca foi atendida por um médico negro."