Corpo de quarentena: no isolamento, mulheres se reconectam com a autoestima
A rotina de isolamento social de mulheres que têm a possibilidade de ficar em casa mudou não só os aspectos práticos da vida. A autoestima e o jeito com que lidamos com nossos próprios corpos ganharam uma importância diferente. Longe dos olhares dos outros, as fotos em frente ao espelho e as selfies aumentaram. E bombam nas redes sociais de quem não sai de casa há pelo menos 100 dias.
Por conta da pressão estética (e da gordofobia) sistematizada que temos em sociedade, há quem esteja com medo de ganhar peso durante a quarentena. Por outro lado, há um movimento de quem está aproveitando o período para que o "corpo de quarentena" tenha um significado diferente. Mas, afinal, por que estamos reparando tanto em nossos corpos, e como fazer para valorizar a autoestima em tempos de pandemia?
Corpo de quarentena: mulheres falam sobre autoestima
"Foca, Maju": a descoberta de uma relação de respeito com o corpo
No segundo mês de isolamento social, a assistente administrativa Maria Julia Fernandes resolveu se propor a uma nova forma de ver seu próprio corpo. Com um histórico de uso de remédios para emagrecer, e de crises de ansiedade por conta deles, Maju aproveitou o período em casa para criar um projeto no Instagram em que a autoestima e a saúde estão em primeiro lugar: o @focamaju.
"Não é um projeto para emagrecer, meu foco é para que eu me sinta bem. Também faço questão de dizer que, no meio de uma pandemia, a gente não tem que estar feliz e disposta sempre, querendo se exercitar. Afinal, vão ter dias em que a gente vai estar na bad, contando o número de infectados pelo covid, por exemplo".
No perfil, ela compartilha fotos em frente ao espelho, como a de cima, receitas de comidas e mensagens do tipo "corpo bonito é aquele que tem gente feliz dentro".
Sessão de fotos: valorização da autoestima
As fotos no Instagram, diz Maju, são ferramentas para aprender a lidar com o próprio corpo. "Sempre tive dificuldade de aceitar a aparência das minhas pernas, grandes, grossas e pesadas". Durante o isolamento, ela resolveu fazer uma sessão de fotos caseira, valorizando justamente essa parte do corpo. "É algo de que eu estou aprendendo a gostar, foi uma forma de me olhar diferente".
Ela conta para Universa que a dificuldade de se relacionar bem com o próprio corpo a acompanha há muito tempo, e veio por influência de terceiros. "Ouvia comentários por não ter sido uma criança magra, e acabei engordando muito rápido ao crescer. Há dois anos, fui a um médico endocrinologista e emagreci 11 quilos em dois meses. Achei maravilhoso, era elogiada. Só que eu cheguei a ter dez crises de ansiedade e ir ao hospital porque tinha taquicardia com o medicamento", explica.
Ao parar de se medicar para emagrecer, mais efeitos negativos para o próprio corpo. "Engordei tudo de novo, meu cabelo começou a cair, as unhas ficaram fracas, O remédio desregulou várias coisas em mim, tanto na saúde física quando na mental. Foi quando passei a fazer tratamento psicológico e com uma nutricionista que me acompanha".
Publicar as fotos de maiô em frente ao espelho no Instagram é resultado desse processo de respeito ao corpo. "Hoje, eu vivo minha realidade, não tenho vergonha de mostrar que tô inchada, não fico tentando desfocar as fotos, colocando filtro em cima de filtro ou tirando as fotos de longe".
"Celulite de quarentena" e a liberdade do corpo
Para a professora, fonoaudióloga e produtora de conteúdo Simone Marcenal da Silva Coutinho, o isolamento tem sido a chance de não só olhar para si mesma, como de difundir a palavra do "corpo livre" para as "sereiudas", expressão que usa para suas seguidoras no Instagram @eusimonemarcenal.
"Recebo muita mensagem das sereiudas sobre a relação com o corpo, e elas falam que eu tenho coragem de publicar minhas fotos. Não é coragem, é que eu aprendi a me aceitar, e isso é libertador", explica. "Nesse isolamento, eu tenho tentando lidar de maneira menos tóxica ainda com ele; e, nisso, entra o prazer de comer algo que eu gosto; se eu não puder fazer isso, vai ficar muito mais difícil".
Simone conta que tem percebido o surgimento de mais celulites no corpo durante o isolamento social — e que está tudo bem.
"Meu corpo é mutável, e eu sou muito mais que as celulites".
Depois de mudar o cabelo, tudo se transformou
A produtora de conteúdo conta que seu processo de aceitação do corpo se deu em 2017, com as reviravoltas que teve na vida. "Minha mãe era muito vaidosa e vivia preocupada com que as pessoas pensariam dela. Naquele ano, ela estava com Alzheimer e ficou totalmente dependente de mim. Isso me fez questionar sobre ser refém da ditadura da beleza".
Nessa época, Simone também mantinha os cabelos alisados e loiros "para se sentir aceita" e tomava remédios para emagrecer. Decidiu se libertar dessas amarras estéticas: largou os medicamentos e engordou 30 quilos e, depois de um corte químico do cabelo, resolveu fazer o big chop. "Só que eu estava forte por dentro, e comecei a falar de amor-próprio na internet".
Ela conta que ainda tem partes do corpo que a incomoda, como a barriga e a bunda, que acha muito grande. "Apesar de eu não gostar do corpo 100%, ele está assim hoje e eu tive que aprender a me amar", conclui. "Às eu penso em emagrecer por causa de problemas no joelho, me complica de ser mais ágil; mas o momento já está tão louco, tudo bem ganhar uns quilos a mais agora".
Quarentena, pressão estética e gordofobia
A doutoranda em psicologia social e institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Flávia Novais explica que, de fato, uma parcela das mulheres que está em casa pode ter mais tempo para olhar o próprio corpo — ainda que esteja trabalhando mais em home office, por exemplo. O lado positivo é que, nesse momento, surge a disposição para rever padrões estéticos e passar a olhar o corpo de maneira mais generosa.
Flávia alerta, no entanto, para os perigos que os rótulos negativos associados a um "corpo de quarentena" podem trazer.
"Pode ser visto como um corpo que foi largado de mão, desleixado, e é perigoso que esse discurso seja fortalecido. A gente já vive uma sociedade gordofóbica [o que se reflete nos memes de corpo antes e depois da quarentena] e as mulheres já sofrem a vida inteira com elementos de pressão; no isolamento, é preciso entender que nosso corpo é um veículo e que muda de acordo com o que está acontecendo".
Pelo fato de mulheres serem ensinadas a dar muito valor à beleza, explica, o "rosto de quarentena" também vira questão; por isso, é natural o movimento de pessoas que vão fazer botox em drive-thru e outros procedimentos estéticos durante a pandemia. "A autora Naomi Wolf fala que a beleza como uma forma de controle de corpos femininos. Por isso, se torna tão parte do que é ser mulher fazer sobrancelha, botox, skincare. O fato de elas procurarem e arriscarem a vida para isso é uma resposta ao que a gente discute, da prisão do que é ser mulher".
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