Contos nauseados e reclusão: Dalton Trevisan era um estranho no século 21
"Um dia ele morreu. Foi enterrado pelas mulheres, nem uma chorou. Sem dinheiro para o trem, seguiram a pé rumo à cidade. Deu um pulo a barriga de Augusta, estava para ser mãe".
Lemos num dos contos de "Novelas Nada Exemplares", um dos principais livros de Dalton Trevisan. O autor partiu nesta segunda-feira (9), aos 99 anos. Diferente de João Nicolau, seu personagem, os leitores que velam a morte do Vampiro de Curitiba. E há, sim, lamento, talvez choro.
Atento aos detalhes da realidade, à intimidade e particularidades das pessoas, Trevisan construiu uma obra fundamentada no conto, gênero que dominou. Com histórias curtas e linguagem concisa, levou para as páginas gente comum em suas atividades e problemas rotineiros. Brigas, amores e a vida na cidade —numa capital paranaense bem diferente da que vemos hoje, sobretudo— são elementos recorrentes em sua literatura.
A obra de Trevisan carrega marcas que contrastam com certa literatura cheia de boas intenções tão incensada em nossos dias. Certa vez, na apresentação de uma edição de "Novelas Nada Exemplares", Carlos Heitor Cony apontou:
"Trevisan situa-se adequadamente na linha nauseada da literatura, aquela linha que não usa a literatura para salvar ou acusar o homem, apenas para aproximá-lo das nossas retinas, mostrá-lo a nós mesmos e, através de diferentes planos, através de diversos retratos, constatarmos que somos iguais a ele, que somo nós mesmos esses eternos noivos da província, esses ébrios e desesperados das noites de garoa".
Outro ruído com o que vemos hoje, quando imagens e discursos de escritores parecem estar à frente de seus livros e valer mais do que a literatura em si, é a recusa de Trevisan aos holofotes. Ao longo da vida, fez o possível para ser reconhecido pelo que escreveu, sem que qualquer tipo de aparição pública ou informação particular interferisse na experiência do leitor. Da reclusão que veio o apelido de "O Vampiro de Curitiba", também título de um livro que lançou em 1965.
Esse apego à sombra gerou obsessões. Muitos leitores se gabam de ter alguma história para se contar sobre Trevisan: um esbarrão em alguma esquina, a desconfiança de tê-lo visto na padaria, a dúvida se seria ele do outro lado da rua? Certa vez, esteve no café da editora e livraria Arte & Letra para acertar detalhes de uma edição artesanal de "A Mão na Pena". O lugar estava cheio, mas ninguém o reconheceu.
Por conta do centenário de nascimento que se aproxima —alcançaria a marca no próximo 14 de junho—, o nome do autor voltou a receber boa atenção de leitores e editoras. A Arte & Letra mesmo lançou "Traçadas Linhas", uma caixa que traz uma coleção de materiais de Dalton e do ilustrador Poty. A Record, por meio do selo Reco-Reco, lançou dois bonitos livros juvenis ilustrados baseados nos contos "O Ciclista" e "Chuva".
Aliás, a Record era a casa de Trevisan até algumas semanas atrás. Mas, no começo de novembro, a Todavia anunciou que é a nova editora do autor. A promessa é reeditar toda a sua produção a partir do ano que vem. É uma obra rendeu a Dalton os principais prêmios de nossa literatura e que ainda conta com títulos como "Cemitério de Elefantes", "Morte na Praça", "Pico na Veia", "O Anão e a Ninfeta" e o romance "A Polaquinha", exceção em sua trajetória.
Um episódio marca essa atual atenção para Dalton e a sua firmeza em não deixar que a própria imagem se sobreponha à literatura. Ana Lima Cecílio, curadora da vez da Flip, tentou levá-lo para o evento de Paraty. Fez o convite e recebeu a seguinte resposta:
"Já me convenci que, em pleno juízo, nunca mais sairei do meu apartamento, nem falarei em público, ao menos na primeira pessoa. Afinal, o que são esses pobres contos em que tanto me confesso? Se você deseja discuti-los na Flip, no lugar do autor: supimpa!".
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