Dalton Trevisan: a melancolia da chuva e a vida em risco sobre duas rodas
Gostei de saber que Ana Lima Cecílio, curadora da última edição da Flip, tentou levar Dalton Trevisan para a festa. Aos 99 anos, o vampiro de Curitiba é o escritor mais recluso do Brasil.
Há décadas que suas aparições são raríssimas. Vez ou outra alguém o flagrava perambulando pelas ruas da capital paranaense, mas nem isso tem rolado mais. Sobraram algumas histórias privadas que circulam entre leitores em dúvida de quanto há de real e de fabulação naquilo.
Dalton Trevisan não iria. Ana Lima certamente sabia disso. Mas faz parte de qualquer curadoria tentar levar para o seu evento o que considera existir de melhor, de mais relevante para a literatura, de mais atraente para o público —nem sempre esses atributos andam juntos, importante ressaltar.
O não Ana Lima já tinha, o jeito era tentar convencer o vampiro a deixar o seu castelo e rumar para o litoral fluminense. Impossível. Ficou com o não mesmo. Um não digno. Cumpriu o seu papel e terminou com uma boa história para contar.
Seguimos com a literatura do último dos tímidos, como Dalton se define, autor de títulos como "A Polaquinha" e "Novelas Nada Exemplares".
E agora duas simpatias correlatas à obra do escritor chegam as livrarias. Falo dos livros ilustrados "O Ciclista" e "Chuva", publicados pela Reco-Reco, braço de literatura infantojuvenil da editora Record.
Em "Chuva" temos um panorama de, evidente, um dia chuvoso, em que a água "engorda o barro e dá de beber aos mortos".
Vendedores somem das ruas, cachorros arranham portas, idosos reclamam do frio nos pés, mães se preocupam com os filhos e guardas se questionam: por que, Senhor?
É uma chuva que extrapola o mero aguaceiro e flerta com nossas chuvas internas, nossos dias tempestuosos mais íntimos. A pegada melancólica do texto é potencializada pelos desenhos de Eloar Guazzelli.
São cenas turvas, em que o preto e o azul-escuro predominam. O instante em que uma pelúcia aparece parcialmente submersa no barro é daqueles que nos levam às perdas da infância.
"À primeira leitura, lembra os pequenos poemas em prosa de Baudelaire: líricos, elásticos, líquidos. Mas que o leitor não se engane: a estrutura é rigorosa. Cada sinal de pontuação desempenha uma tarefa precisa. Tudo no conto foi extremamente pensado: pingo por pinto", escreve o crítico literário Augusto Massi, no posfácio de "Chuva".
O espaço urbano também é explorado em "O Ciclista", que ganha uma camada extra de sentido numa época em que as grandes cidades estão repletas de gente apressada sobre motos, costurando o trânsito e colocando a vida em xeque para fazer o maior número possível de entregas.
Pela escrita de Trevisan e pelos traços de Odilon Moraes, acompanhamos um rapaz que perambula pelas ruas montado em sua bicicleta. Desvia de obstáculos, entremeia-se nos carros, sente um bafo na nuca: vem do caminhão, mas também pode sinalizar o fim de sua vida. A camada aventuresca de um dia rotineiro é ressaltada na obra, também posfaciada por Massi.
"O Ciclista" e "Chuva" foram trabalhados por Trevisan primeiro em colunas de jornal. Depois, chegaram reformulados e reeditados em livros de contos do autor.
Seguimos e seguiremos sem a presença física do vampiro, mas continuamos perto do que um escritor tem a oferecer de mais importante: sua obra.
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