'Como que faz para ser neomarginal?', parças e as bolhas da literatura

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A cena patética rolou durante o Flipoços deste ano. Camila Panizzi Luz convidou o escritor Wesley Barbosa para subir ao palco e dar uma palavra a respeito do seu trabalho.
Ao ouvir o autor de "Viela Ensanguentada" (Barraco Editorial) falar sobre literatura e o Coletivo Neomarginal, que reúne artistas que se sentem à margem do mercado artístico, Camila o interrompeu: "Como que faz para ser neomarginal? Eu quero ser uma neomarginal. Gente, olha que tudo: Camila Luz, neomarginal: nunca fui presa".
Logo muitos leitores constataram o óbvio preconceito impregnado na troça de Camila. Por que associar um movimento de escritores à prisão, ao crime? A estupidez ganhou novas cenas, algumas delas reunidas nesta reportagem.
O Flipoços tem talento para episódios deploráveis. Há alguns anos, um cara autointitulado príncipe num país sem monarquia foi convidado para o evento e bradou toda a sua homofobia. Mas também é um festival que, com 20 anos de vida, coleciona seus méritos.
A colega Jéssica Balbino, que conhece profundamente as virtudes e os absurdos (ela alvo de um deles) do Flipoços, escreveu a respeito disso. Recomendo este texto.
Voltemos a 2025.
Camila é marqueteira e neste ano, informa no LinkedIn, lança dois livros: "Tempestade da Mente" e "Liderança Feminina Sem Fronteiras". Ao que parece, são misturebas de autoajuda empresarial com ladainha de coach que tanto estão na moda.
Pelo que a própria curadora do Flipoços falou, a convidada ganhou espaço por ser filha de uma amiga de longa data, o que revela um pouco de como funcionam certas dinâmicas. A força dos parças —e são diversos grupos de parças, não se enganem— explica muito do que vemos em espaços de prestígio e instâncias de reconhecimento, inclusive na literatura.
"Também nunca fui preso", comentou Wesley Barbosa no Instagram. A estupidez da qual foi vítima ecoa o que acontece desde sempre com artistas marginalizados. Lembro bem de, ali pelos anos 1990, senhorinhas demonstrarem espanto e medo ao notarem que o sucesso dos Racionais começava a extrapolar o Capão Redondo e outras periferias.
É a mesma ideia que está por trás das palavras ditas por Camila.
Faz décadas que a literatura feita fora de bolhas como Pinheiros, Vila Madalena e Ipanema é reconhecida pelos leitores. Costumamos lembrar de gente como Ferréz, Sérgio Vaz e, mais recentes, Geovani Martins e Lilia Guerra. Mas, se formos além no tempo, notaremos que uma Carolina Maria de Jesus, só para pegar mais um exemplo, também faz parte dessa história.
Acontece que a arte feita por quem vive e retrata determinados lugares permanece misteriosa para alguns e segue vista como curiosidade ou excentricidade por tantos outros. Uma gente que se sente mais próximo de Nova York e Londres do que de Parelheiros ou da Rocinha.
Alguns nomes são festejados, sim. Hoje essas produções encontram seus próprios caminhos para circular graças a artistas que batalharam para erguer cenas admiráveis em margens por todo o Brasil.
Entretanto, olhando para o sistema editorial, certas estruturas arcaicas cheias de preconceito permanecem —e vez ou outra, de cima do palco, com o microfone em mãos, gritam na nossa cara.
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