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Opinião

Temos que comemorar quando um jornal literário completa 25 anos

"Temos duas 'maldições' lançadas, aparentemente, contra a literatura do país: a primeira é 'serás sempre sociológica e/ou política'; a segunda é 'terás a maior das dificuldades em criar personagens de carne e osso, que respirem e precisem ir ao banheiro'. Outra coisa: não se faz literatura sem expor o próprio pescoço. E, no momento, nossos pescoços são valiosos troços, de budas ditosos".

Era o que dizia Fernando Monteiro, autor de "Aspades, Ets, Etc" (Record), na entrevista da edição número zero do Rascunho, publicada em abril de 2000. O jornal fundado pelo escritor e editor Rogério Pereira em Curitiba acaba de completar 25 anos de vida, marca admirável para um veículo especializado em literatura.

É sempre uma experiência curiosa revisitar jornais antigos e contrastar o que vemos por aquelas páginas com o que temos hoje. Fernando Monteiro, por exemplo, faleceu há pouco tempo, em fevereiro, mas alguns pontos da resposta que destaquei permanecem quentes em nosso meio literário.

Na capa daquela edição, Rodrigo Gonzalez escrevia sobre "Antes do Fim", de Ernesto Sabato, autor hoje menos lido do que merecia. "Sabato, último grande escritor argentino, eminência sobrevivente de uma era —-Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Cortázar, entre outras santidades—- escreve suas memórias não só com a consciência crítica que sempre demonstrou, mas com muita simpatia", registrou meu xará.

Jefferson de Souza olhou para versos escritos e musicados de autores como Alice Ruiz e Arnaldo Antunes para pensar a respeito da poesia em forma de música que se alastrava pelas rádios. E um espaço para a ficção era ocupado por Manoel Carlos Karam, que morreria sete anos mais tarde. Eis o começo daquele conto:

Um apontador de lápis fixado na beirada da mesa, sobre a mesa, caixas com lápis. Na primeira leva, o homem faz a ponta de dez lápis. Ele vai até a janela e olha para a rua antes de retornar ao trabalho.

Na segunda leva, faz a ponta de 15 lápis, confere a quantidade e aponta outros 18 lápis. Dá um suspiro para representar cansaço e usa o apontador em mais 12 lápis. Repete o suspiro como se a primeira vez tivesse sido apenas um ensaio.

Ainda na edição inaugural, Eduardo Ferreira festejava o canto para escrever sobre a tradução literária. "Não tenho conhecimento de outra coluna dedicada exclusivamente à tradução num veículo jornalístico hoje no Brasil."

Pois abro novas edições do Rascunho e sei que seguirei encontrando um espaço para se pensar a tradução. Costuma estar ali na página 2. Na edição 300, a de abril deste ano, o próprio Eduardo Ferreira segue com seus comentários sobre a versão em português de "A Montanha Mágica", clássico do alemão Thomas Mann vertido por Herbert Caro.

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É uma edição parruda essa comemorativa. São 48 páginas com boa entrevista com Rosa Montero, resenha da ótima "Trilogia dos Gêmeos", de Ágota Kristóf (Dublinense, tradução de Diego Grando), e ficções de autores como Marçal Aquino, João Anzanello Carrascoza e Maria Valéria Rezende.

Hoje o Rascunho me parece ser um veículo mais múltiplo do que era no passado. Um canto para literatura infantojuvenil, olhares para escritores de diferentes cantos do mundo, muita atenção a escritores brasileiros. Há abertura para repensar o clássico, mas, fundamental, o que predomina é o interesse pelos contemporâneos.

E é um espaço que costuma ser receptivo a novos nomes, sejam eles autores ou pessoas interessadas em pensar a literatura. Foi o primeiro veículo a me abrir as portas e publicar minhas resenhas, isso lá por 2012. Daí também meu inegável carinho pelo Rascunho.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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