James Baldwin: os donos do sonho americano e seus massacres que viram lenda
Numa cena de "Eu Não Sou Seu Negro", o escritor James Baldwin comenta como cresceu vendo filmes em que homens brancos montados sobre cavalos desbravavam os Estados Unidos para conquistar novos territórios. Pelo caminho, davam fim nos indígenas, sempre retratados como seres animalescos.
Baldwin reflete sobre como os faroestes impactaram sua formação. E não só. Já maduro, afligido pela violência contra negros e homossexuais, notou que aquela carnificina com os povos nativos não estava no passado.
Havia, porém, um leque maior de pessoas trucidadas por uma parcela da população orgulhosa da autointitulada superioridade, crente de que era para ela que o tal sonho americano estava manifestamente destinado.
"Fizemos um massacre virar lenda", diz o escritor ao analisar o impacto do cinema na construção de imaginários. Muitas vezes a arte se vende como um retrato de determinadas situações, mas o que faz, na verdade, é estabelecer em nossa cabeça uma versão da história que nem sempre corresponde à realidade.
A ficção molda o real —e aqui sugiro o meu papo com o professor Júlio Pimentel Pinto. Assim, milhões e milhões de estadunidenses —e não só— acreditam, há mais de século, na conversa de que cabe aos mocinhos acabar com o mal. Dá-lhe maniqueísmo e estereótipos.
Após questionar uma suposta autoridade moral do Ocidente, a reflexão de Baldwin se volta para a forma caricatural e subalterna como os negros eram retratados em propagandas. E ganha uma camada oportuna quando o autor aponta programas de televisão imbecilizados como os responsáveis pela pasmaceira geral enquanto atrocidades se tornam rotineiras.
Lançado em 2016, "Eu Não Sou Seu Negro" é um exemplo da boa junção da literatura com o cinema. O filme nasce de "Remember This House", livro de Baldwin sobre três grandes nomes do movimento negro dos Estados Unidos: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr.
São homens de ideias e trajetórias díspares, mas que tiveram um mesmo fim: assassinados entre 1963 e 1968, antes de chegarem aos 40 anos. Lutavam por uma vida mais digna para os negros dentro da sociedade norte-americana, desde sempre conflagrada. A paz, muitas vezes, só existe quando um grupo é massacrado a ponto de sequer conseguir reagir.
Um dos grandes nomes da literatura dos Estados Unidos do século 20, autor de obras como "O Quarto de Giovanni" e "Notas de um Filho Nativo", Baldwin não teve tempo de terminar "Remember This House" antes de sua morte, em 1987.
A partir do manuscrito, o diretor haitiano Raoul Peck constrói um documentário em que o texto do escritor, narrado por Samuel L. Jackson, dialoga com entrevistas de Baldwin, discursos, trechos de noticiários e uma série de fotos e vídeos revoltantes.
Numa das cenas, uma mulher vomita bobagens. Diz algo como: Deus pode até perdoar crimes, assassinatos, mas jamais perdoaria o casamento inter-racial. Outra, numa manifestação, empunha um cartaz: "Mistura de raças é comunismo". Certos fantasmas são perenes.
A imagem de uma garota negra chegando numa escola para estudar é a que mais me marcou. Cercada por colegas brancos, ela é xingada, vilipendiada, humilhada. Alguns recortes colocam em evidência a molecada que vê graça naquilo, regozija-se com o próprio ódio.
A vontade é de saber quem são aqueles racistas, nome por nome. O que fizeram de suas vidas, o que pensam daquela barbaridade que protagonizaram. Perguntar por que se portaram daquela forma só para ouvi-los verbalizar a própria indignidade.
Como a garota reagiu? Seguiu altiva, de cabeça erguida, confiante de qual caminho desejava trilhar, apesar de toda estupidez ao seu redor.
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