Quais as nossas chances?

A semana foi de tretas. Uma atrás da outra. Convicções voando de um lado para o outro, sendo atiradas como flechas a partir de trincheiras bem definidas. Vamos nos concentrar no Brasil porque se formos falar do que acontece "no Norte", como diria minha avó que teve que sair da Itália por causa de Mussolini, precisaríamos de tempo - e tempo, a gente sabe, não temos mais de onde tirar nessa vida corrida.
O Brasil não vai bem. Já esteve pior, verdade. Mas não estamos bem. Desmatamento, qualidade de vida, precarização do trabalho, saúde cada vez mais privada, escolas públicas sucatizadas em nome da ganancia de empresários bilionários, polícia a cada dia mais violenta e assassina.
E, diante de tantos problemas sérios, a turma passou a semana falando sem parar do episódio do podcast da Rádio Novelo que trata de um caso de abuso psicológico cometido em conjunto por alguns homens da elite intelectual paulistana contra uma promissora jovem escritora. Há 13 anos.
Que perda de tempo. Onde vamos parar?
A alegação de um tanto de gente, que a princípio faz sentido, é: parem de se concentrar em coisas que não têm importância e vamos falar do fim do mundo, de Trump, da volta do Nazismo, da fome.
Se a gente não tiver tempo ou condições de refletir, esse argumento faz mesmo muito sentido. Mas tentemos parar e pensar.
As sociedades consideradas mais "evoluídas" do planeta mergulham na radicalização do neoliberalismo - que já é bastante destrutivo sem ser extremo mas que, em sua versão extremada - o fascismo - passa a ser destrutivo mais rapidamente. E os novos-velhos líderes que estão no poder fazem o que como uma das medidas mais imediatas para estabelecer suas revoluções? Declaram guerra a mulheres, pessoas trans e comunidade LGBTQIAPN+. De saída. No dia um e dele em diante.
Há outros grupos atacados, como os imigrantes, mas a guerra que envolve o gênero é central e só não vê quem não quer ou não consegue.
O debate sobre gênero precisa ser escancarado agora. Ele não é cortina de fumaça. Ele não é um detalhe. Falar do direito ao aborto é falar de gênero. Falar de masculinidade adoentada é falar de gênero. Falar de abuso psicológico é falar de gênero. Falar de direitos humanos irrestritos para pessoas trans é falar de gênero. A ideia de que esse debate é secundário ou desimportante, nutrida por uma esquerda intoxicada e despreparada, não convence nem à extrema-direita. A extrema-direita sabe que esse debate é central, tanto que age de imediato e com força.
Enquanto direitos da comunidade LGBTQ e das mulheres são retirados, os detentores do poder falam em "mais energia masculina". Políticas de proteção a homens no trabalho são pensadas. A masculinidade com M maiúsculo é cantada em verso e prosa. Trump e sua gangue sabem que estão travando uma batalha fundamental: a de gênero. A mais definitiva das guerras, como sugere o filósofo Paul Preciado: "De fato, será a mais importante das guerras, porque o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida."
Esse é o debate que nos divide hoje. A esquerda masculinista e tradicionalista não o compreende. Tem muita mulher nesse grupo dado que a masculinidade é uma ideologia potente que está em todas nós também. Essa esquerda não quer sequer tentar entender. Ela quer descartar o debate de gênero como um todo para focar na economia, como se debater gênero fosse uma coisa suspensa e alienada das formas como produzimos, distribuímos, consumimos. Como se economia não fosse economia política.
Assim, quais as nossas chances?
Dialogar me parece a única. Mas aqui caímos num paradoxo. Os homens que querem justiça social e um mundo igualitário sabem que, para se educarem na luta antirracista, terão que falar com os movimentos negros e com seus intelectuais. Sabem que não podem sair por aí fazendo textões e vídeos explicativos sobre o que deveriam estar sentido as pessoas negras, explicando como elas devem agir, se comportar etc. Pelo menos esse entendimento está mais difundido hoje entre os homens brancos de esquerda. Os camaradas navegam por essas águas com o devido cuidado, bebendo de fontes importantes, colocando-se nos seus devidos lugares.
Já sobre a luta anti-machista, nossos colegas acreditam que podem seguir pensando sozinhos e falando com os companheiros. Leem Marx mas não sabem quem foi Lerner. Leem Engels mas não têm ideia da teoria de Federici. Sabem o que é mais valia mas não misoginia. Entendem dos males do capitalismo mas desdenham das tragédias causadas pelo patriarcado. Seguem explicando às mulheres o que elas devem sentir, como devem se comportar, até onde podem ir, quando é hora de falar e quando é hora de calar. Alguns acham natural abusar de suas companheiras. Os relatos que tenho recebido são dilacerantes. Que tipo de igualdade buscam os colegas de esquerda? Uma igualdade entre si, desprezando a que envolveria o gênero. Acham que assim que o capitalismo acabar o mundo será bom para as mulheres. E não é assim que funciona infelizmente.
Para sairmos desse dilema teríamos que conseguir dialogar, mas eis aqui o paradoxo. A masculinidade adoentada não topa ir pedir ajuda ou explicação a mulheres. Sim, há exceções. Muitas. Mas esses são homens que estão se livrando do tipo adoentado de masculinidade. Tenho dialogado com homens que estão genuinamente interessados num mundo melhor e em uma versão melhor deles mesmos. Só que precisamos de mais gente.
Venho buscando um novo lugar de diálogo. A compreensão de que não agimos de certos modos porque somos bons ou maus mas porque vivemos dentro de um sistema que opera para nos fazer agir assim desde muito cedo parece encontrar ressonância. Como eu seria se tivesse nascido homem? Não é coerente acreditar que eu teria escapado de ser infectada com esse tipo de masculinidade e que a colocaria alegremente em prática. Precisamos nos implicar nas transformações pessoais, mas também cobrar a sociedade que nesses termos nos constituiu.
Nasci branca e sei como o racismo é estrutura formadora da minha personalidade. Ele está em mim. Que eu busque me desconstruir é dever e exercício de vida. Entender essas articulações é compreender que a masculinidade está em todos, todas e todes nós e que ela não é sinônimo de homem. Conheço homens mais livres dessa masculinidade do que algumas mulheres.
Essa masculinidade - violenta, individualista, exploratória, competitiva, não-empática, arrogante - é o que precisa morrer. Essa ideia de "ser homem", de ser "macho", de broderagem. É isso que preciosa morrer para que nossa espécie tenha alguma chance. É essa masculinidade que devasta o planeta, que inicia guerras, que mata, que abusa, estupra, assedia. Ela tem absolutamente tudo a ver como o capitalismo. Ela corre com ele de mãos dadas. E ela é a base do patriarcado. O curioso é que - já vimos antes - acabar com o capitalismo não acaba com a doença do patriarcado. Mas acabar com o patriarcado e com esse tipo predador de masculinidade causaria danos irreversíveis ao capitalismo. Ainda assim, os colegas de esquerda, que mal sabem o que é patriarcado, nunca leram sua teoria, nunca se importaram em desvendar suas estruturas, acreditam que precisam seguir na luta para derrubar o capitalismo sem falar de gênero e, quando o assunto aparece, desdenham. Que um dos casos recentes tenha acontecido dentro e uma pequena bolha da burguesia paulistana não deveria ser suficiente para tirar sua relevância e universalidade. Pelo contrário. Se entendessem das amarras do patriarcado saberiam que o caso é importante por retratar um problema que afeta todas nós, todos os dias e em todos os cantos desse país.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.