Cultura de ação pós-desastre é nosso grande desafio, diz pesquisadora

Um estudo liderado por pesquisadores de três grandes universidades brasileiras comprovou uma triste realidade: a grande maioria das ações para enfrentar os impactos de fenômenos climáticos no país só acontece depois que eles acontecem.

Em um artigo publicado em setembro de 2024 na revista científica internacional "The Journal of Mountain Science", pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo), da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) fizeram um levantamento cronológico sobre as políticas públicas, programas e ações criados desde 1960 para lidar com o problema.

A estimativa é que, entre 1948 e 2023, pelo menos 11 milhões de pessoas tenham sido afetadas por eventos hidrometeorológicos no território brasileiro.

A pesquisa foi baseada na análise de documentos oficiais do governo federal, banco de dados de eventos emergenciais, relatórios de danos e perdas materiais resultantes de desastres naturais no Brasil e em informações fornecidas pelo Serviço Geológico nacional e pelo escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres.

Nesta entrevista ao Ecoa, a pesquisadora e professora do Departamento de Geografia na USP, Bianca Vieira, que esteve à frente do estudo, analisa a atuação do poder público nas últimas décadas diante de grandes desastres.

Entre os exemplos citados por ela estão o Sistema de Alerta do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, lançado em 1984 após enchentes que deixaram mais de 268 mil pessoas desalojados, e o PPDC (Plano de Prevenção de Defesa Civil) do estado de São Paulo, criado em 1989 após grandes deslizamentos de terra no Litoral Norte.

Ela também comenta sobre os riscos para a população dessa cultura de atuação pós-desastre e o descompasso entre universidade e poder público no planejamento de ações para enfrentar o problema.

Como surgiu este estudo sobre a gestão de risco no país?

Eu estava trabalhando na escrita da minha livre docência e senti necessidade de contextualizar mais de 20 anos de pesquisas na área, de tentar fazer uma linha do tempo sobre essas políticas públicas. Não havia um artigo científico que divulgasse isso internacionalmente também.

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Nós temos políticas públicas da Baixada Santista, do Litoral Norte, temos as defesas civis. Mas quando elas começaram a aparecer? Construímos então essa linha do tempo, sem pretensão de fazer avaliação da efetividade das políticas. Nosso objetivo era entender em que momentos grandes leis e ações foram promulgadas. Vimos que a cultura de ação pós-desastre ainda é nosso grande desafio.


Onde essas ações após tragédias começaram a ocorrer?

Nós percebemos que houve uma primeira Defesa Civil na década de 1960, logo após os eventos de 1966 e 1967, de um verão para o outro, na Serra das Araras, no Rio de Janeiro. Depois disso, tivemos pequenas ações municipais, mas são em municípios com recorrência desses processos.

Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Espírito Santo são estados que conseguiram criar leis e ações para redução de desastres após grandes tragédias. Na década de 1980, por exemplo, isso foi muito marcante no Sudeste, no Rio e em São Paulo, e teve muita influência nas defesas civis em outros estados, tanto que o plano preventivo de São Paulo é replicado em outros lugares.

Tivemos pelo menos 20 grandes eventos extremos registrados, o que é uma grande quantidade de catástrofes para que se faça alguma coisa. O ápice foi na região serrana do Rio, em 2011. Depois disso, tivemos a criação do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). A lei 12.608/2012 também passou a obrigar municípios a trabalharem na prevenção, mas isso ainda precisa de mais fiscalização.


Qual é o risco dessa cultura pós-desastre?

Como poder público, se você trabalha a partir do princípio de que já vai haver o desastre, a situação ficará pior ao invés de melhorar. Estamos vendo que a política pública não é aplicada, e a culpa é colocada em "São Pedro". A população pobre é a que mais sofre e, dependendo da magnitude do desastre, os impactos chegam a todas as camadas. Isso aconteceu nas enchentes do Rio Grande do Sul, que atingiram desde o pequeno produtor ao grande latifundiário.

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Quais são as dificuldades para essa gestão de riscos hoje?

O Brasil tem uma combinação de extensão territorial e diversidade de paisagens enormes com muitos problemas habitacionais. Em outros países, como a Itália, também há diversidade de paisagem, mas a população é menor e há menos problemas habitacionais.

Também existem alguns países que têm bons exemplos de redução de riscos, mas trabalham com outros riscos além da chuva. São áreas menores, que lidam com atividades vulcânicas e sísmicas; são adaptações diferentes que talvez não caibam no contexto brasileiro.

Nós avançamos muito em termos técnicos sobre como esses processos são deflagrados, mas ainda falta comunicação entre as instituições públicas para aplicar recursos em nível municipal que ajudem a evitar novas catástrofes.

Quando vou para uma área que já tinha um mapa prevendo escorregamentos e que não foi utilizado, isso me angustia muito como pesquisadora e cidadã. Muito do que produzimos na universidade ainda fica na universidade e isso é um problema.

O material avançou muito, mas a política pública ainda utiliza ferramentas da década de 1960, 1990 ou anos 2000. O mapeamento de riscos realizado na maior parte dos municípios brasileiros é baseado em uma metodologia desenvolvida para São Paulo em 2014, que funcionou muito bem naquela situação, mas que não funciona para áreas da Serra do Mar, por exemplo.

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Hoje em dia temos drone, imagens de satélite superavançadas e ainda continuamos fazendo trabalho de formiguinha no campo, vendo se a casa tem escorregamento atrás ou na frente e daí identificamos como área de risco.

Esse cenário tende a ficar pior com a crise climática?

O Brasil tem regiões mais suscetíveis a catástrofes climáticas relacionadas a chuvas do que outras. As principais são a Serra do Mar, a Serra da Mantiqueira e a Serra Geral, na extensão que vai do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná a Santa Catarina. É uma área cujo terreno é bem conhecido, em que temos uma concentração de escorregamentos e fluxos de detritos e inundações.

Com a crise climática e aumento nos índices pluviométricos, a tendência é que áreas suscetíveis a deslizamentos e inundações tenham eventos de magnitudes ainda maiores. Qualquer município dentro dessas serras vai continuar tendo movimentos como deslizamentos. Isso faz parte da natureza daquele compartimento geológico.

Então, precisamos trabalhar com novos índices, como apontamos no artigo. No Litoral Norte, as defesas civis trabalham com índices concentrados de 100 mm de chuva em três dias e a partir disso há o alerta alterado de atenção para máximo. Mas, em São Sebastião, tivemos 600 mm em 15 horas. Os índices precisam ser recalculados diante das emergências climáticas. E a gente não precisa de muito para isso. Já sabemos onde a chuva cai, e que a chuva aumentou.

Qual é o caminho para nos prepararmos para isso?

As pessoas precisam se sentir seguras além do muro de arrimo atrás de casa, precisam ter rotas de fuga. Então, a população precisa cobrar o poder público em relação a isso. E o poder público precisa incluir a investigação da geologia em seus projetos.

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Temos técnica e ferramentas, estudos prévios, mas eles ainda são aplicados muito pontualmente. No Brasil, não tem como se trabalhar de casa em casa. Precisamos setorizar grandes áreas porque não temos equipes suficientes na defesa civil, nem nas universidades e institutos. Isso precisa ser em grande escala. A parceria entre universidade e poder público também precisa acontecer urgentemente.

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