Topo

Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Por que os homens ainda têm o câncer que pode fazê-los perder o pênis

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

11/02/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Homens, cuidem do que é seu: se existe um tumor totalmente evitável é o de pênis. Vocês até podem pensar que, entre as lesões malignas, ele é um bocado raro. Verdade. Apenas 2% dos cânceres que acometem a população masculina brasileira acontecem ali, onde ela tanto preza. Então, talvez se perguntem para que esquentar a cabeça, não é mesmo? E eu devolvo: para não perder a outra cabeça.

Não sei se fazem essa ideia desagradável, mas precisamos encarar que 1.092 homens tiveram o membro amputado entre 2019 e 2020 no Brasil. E tudo porque procuraram o médico tarde demais, quando já não adiantava tirar apenas um pedaço de pele e a única saída era cortar a glande fora ou até o pênis inteiro.

Essa busca tardia por ajuda, que infelizmente já é praxe entre os nossos rapazes, deixa os especialistas da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia) ainda mais preocupados em tempos de pandemia. Tanto que declararam que fevereiro inteiro será mês de combate ao câncer de pênis.

"Segundo o Ministério da Saúde, em 2019 ocorreram 2.193 diagnósticos da doença, mas em 2020 foram apenas 1.788", informa o médico Roni Fernandes, diretor de comunicação da SBU e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, onde é o responsável pelo ambulatório de uro-oncologia. "Essa diferença são homens que devem estar com esse câncer e perdidos por aí, sem qualquer tratamento", lamenta.

O isolamento social ou, quem sabe, a dificuldade para encontrar um médico em locais com hospitais lotados em função do novo coronavírus era tudo o que faltava para o flagra na doença atrasar de vez — como está acontecendo com outros tipos de câncer também, diga-se.

O tumor de pênis afeta principalmente os senhores acima de 50 anos. Fiquem espertos aqueles que estão nessa faixa etária: 47% dos casos, quase a metade, acontecem até os 59 anos.

Mas o grande fator por trás é mesmo o período acumulando descuidos — e sujeira — no dito-cujo. E infelizmente alguns garotos começam os maus tratos cedo. Para lhes dar uma pitada a mais de números, nos últimos dois anos foram 322 casos em pacientes entre 12 — apenas 12! — e 39 anos.

A quantidade de doentes pode até parecer pequena. Mas, vejam, isso é relativo. Ao lado de Uganda, Quênia, Egito e Paraguai, estamos no topo do ranking desse câncer, extremamente atrelado à vulnerabilidade social. Em Israel, por exemplo, os registros oficiais apontam um redondo zero no número de episódios de tumores de pênis.

Sim, é uma doença que tem a ver com a pobreza, a falta de informação, de água para tomar banho, de sabão e de noções de higiene, a dificuldade de acesso aos serviços saúde e ausência de vacinação, somando tudo isso ao tabagismo.

Enquanto o país não varrer a desigualdade aviltante do mapa, brasileiros perderão seu pênis ou parte dele. Mas não se iluda, alguns homens mais privilegiados também derrapam de vez em quando em cuidados fundamentais com a saúde de seu órgão genital. Então, é bom entender mais do assunto e disseminar a informação porque, repito, é um câncer evitável.

Como surge o tumor: uma questão de limpeza

"Não existe um câncer que venha de dentro do pênis, por assim dizer", ensina o professor Roni Fernandes. "Ele aparece sempre na pele, mais especificamente na mucosa que recobre a cabeça do órgão ou glande."

Essa mucosa é bem parecida com a da boca — leia-se, bastante sensível como ela a qualquer tipo de agressão constante. "Infecções e inflamações crônicas, por exemplo, podem levar ao surgimento de uma lesão que, com o tempo por sua vez, se transformará em um câncer", conta o urologista.

E um desses agressores é justamente o esmegma, uma secreção normal dessa mucosa, que originalmente não está ali para fazer qualquer mal. "Ao contrário, o esmegma serve para evitar que o prepúcio, a pele que recobre e protege a glande, acabe ficando grudado nela", explica o médico. Ou seja, tem uma ação deslizante.

No início da vida — até porque o prepúcio dos bebês tende a formar um gorro grande demais para a cabeça do pênis e tudo é mais delicado —, a produção dessa secreção é maior. Mas ela vai diminuindo com o passar dos anos. Nem por isso é para o esmegma ser deixado ali: na hora do banho, os moços precisam repuxar a pele, deixar a cabeça ao ar livre, ou melhor, sob a água e lavar tudo muito bem.

"O esmegma acumulado provoca inflamação e desequilíbrio", avisa o professor Fernandes. Fácil entender. Como sua composição é muito ácida, o pH da região fica alterado. Pior: o esmegma em excesso formando uma camada impermeabilizante somado a um prepúcio que nunca é afastado para deixar o velho sabão agir não permitem que a renovação da mucosa, como a de qualquer tecido, aconteça naturalmente. "Surgem células de mucosa novas nas camadas mais profundas, mas as células velhas e mais superficiais não são eliminadas. Ficam todas ali."

Resultado, meninos: um cheiro ruim danado, como se tudo estivesse apodrecendo lá dentro, e uma pele mais espessa. Com o tempo, surgem irritações e feridinhas que nunca vão embora. Talvez uma leve ardência ou, mais comum, prurido. Opa, tudo isso nem sempre é câncer. Mas é sinal de que está sendo pavimentado o caminho que leva até ele.

Excesso de pele é outro problema

Um prepúcio avantajado não é boa coisa. Se, nos primeiros anos de vida, essa pele não se reduz para assumir um tamanho adequado, aquele capaz de expor completamente a glande com uma leve puxadinha, é caso de buscar tratamento, quem sabe até cirúrgico.

Tratar a fimose — o excesso de pele — não é importante só por causa do câncer de pênis, mas para não dar moleza a uma série de infecções, inclusive as sexualmente transmissíveis, que têm maiores chances de acontecer sem uma boa higienização.

Bem, sendo honesta, um mal pode eventualmente alimentar o outro. "As infecções bacterianas e fúngicas, assim como as provocadas por certos vírus transmitidos por meio do sexo, podem causar machucados na glande que, como outras agressões, algumas vezes também servem de estopim para um tumor", diz Roni Fernandes. "A questão é que o prepúcio, se estiver sobrando, pode esconder tudo. E não é incomum a gente receber pacientes que, por causa disso, nem enxergaram esses pequenos ferimentos."

Estudos também mostram, diz o professor, que muitos homens não afastam essa pele para fazer uma higiene perfeita na hora do banho porque ouviram falar que o sabonete e um suposto excesso de limpeza diminuíram a sensibilidade do cidadão, atrapalhando na hora agá. Essa percepção totalmente falsa tem muito a ver com falta de informação e escolaridade, claro.

No entanto, homens bem esclarecidos também temem a cirurgia de fimose e às vezes se opõem se o urologista sugere o procedimento ao filho. "Existe aí, também, esse imaginário de que o prepúcio faz diferença para a sensibilidade peniana. Quando ouço isso, costumo responder que o desejo masculino tem a ver com a outra cabeça", diz ele, referindo-se àquela sobre o pescoço.

"Isso é tão verdadeiro que muitas vezes pacientes que, por causa do câncer de pênis, tiveram de perder a glande continuam tendo ereções e vida sexual, com direito a orgasmos", conta o professor. "Do mesmo modo, há homens com ejaculação precoce que continuam com esse problema mesmo depois de uma amputação parcial, porque essa rapidez está muito mais relacionada a um estado mental de ansiedade e não com uma maior sensibilidade local." Portanto, em matéria de dificuldades com o desejo, o buraco é sempre mais acima. Eu diria, bem acima.

A relação com o HPV

"Nem todos os casos de câncer de pênis têm a ver com o papiloma vírus humano, o HPV", esclarece o professor Fernandes. "Mas os estudos dizem que ele está envolvido em de 30% a 40% deles."

O HPV provoca lesões na mucosa da cabeça do pênis, que podem ser planas ou formar verrugas. O fato de um homem encontrar algo assim na glande — isto é, se afastar a pele para enxergar direito — é sinal inequívoco para procurar um médico. Mas não é necessariamente a sentença de um câncer prestes a surgir.

Existem mais de 110 tipos de HPV no pedaço e nem todos são o que os médicos chamam de oncogênicos, desencadeando tumores malignos. O ideal, de longe, é nem deixar isso acontecer e há remédio nesse sentido: os adolescentes devem procurar um posto de vacinação.

Desde 2017, o imunizante oferecido pelo SUS passou a ser disponível para os meninos entre 11 e 14 anos também. A má notícia: em 2019, apenas 1 em cada 5 rapazotes se vacinaram e, cá entre nós, por enquanto não há número oficial disponível, mas é provável que no 2020 da covid-19 a procura pela vacina de HPV entre eles tenha sido até menor.

E finalmente o cigarro

Existem bons motivos para os homens apagá-lo, só pensando no próprio pênis. O tabagismo, ao danificar os vasos do corpo começando pelos mais finos, causa tremendas perdas à ereção. Mas, em matéria de câncer, a história é outra.

"As substâncias do cigarro prejudicam os mecanismos de reparação do DNA nas células", informa o professor. Ele, aliás, faz uma comparação bem didática, na qual as duas fitas que, enroladas em uma espiral, formam o nosso material genético seriam feito um zíper.

"Imagine elas se abrindo", ele pede. "E, nesse processo, pense que um daqueles dentinhos metálicos do tal zíper ficou torto. Daí que, depois, não dá para fechar direito", me diz.

As células, porém, têm mecanismos de reparação que consertariam o equivalente à peça quebrada, fazendo o "zíper" voltar a fechar de boa. Sem esse conserto, porém, elas criarão cópias com o mesmo defeito. E saiba: um câncer, no fundo, é um amontado de células defeituosas se replicando sem parar. O cigarro facilita o seu aparecimento ao atrapalhar os mecanismos de reparação logo que algo sai torto

Sinais de alerta

Secreções bem fedorentas, nódulos no pênis ou na região da virilha, machucados que nunca se fecham são, para recapitular, indicativos de algo errado, que pode ser um câncer engatinhando.

"Mas é também para ficar atento a alterações de pele no pênis", avisa Roni Fernandes. O médico lista: os homens podem notar manchas marrons ou azuladas ou outras alterações de cor em algum ponto; podem enxergar pequenas placas ou, ainda, reparar em mudanças de textura, dando a sensação de aspereza ou de que o tecido está mais grosso mesmo.

É essa a hora certa de ir ao urologista para, provavelmente, extrair só a porção de pele que se mostra estranha e doente. Façam isso. Se alguém demorar, correrá o risco de, no mínimo, perder a cabeça.