Lúcia Helena

Lúcia Helena

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Levantamento inédito: por que as doenças do fígado matam tanto no Brasil

Entre nós, brasileiros, uma em cada 33 mortes é causada por alguma doença de fígado. Apesar de isso não ser nada desprezível, até sexta-feira passada, dia 19, ninguém fazia uma ideia precisa de que doença estávamos falando — se de um câncer ou de uma cirrose, por exemplo. Nem poderia apontar se havia diferenças entre gênero, raça ou região do país, por exemplo.

Na verdade, o retrato que pesquisadores mineiros traçaram das doenças hepáticas no Brasil é completamente inédito. Não havia um levantamento tão minucioso e nítido. Publicado no periódico científico britânico The Lancet Regional Health — Americas, ele contempla dados do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e das prefeituras ao longo de 25 anos, no período de 1996 a 2021.

Por que ninguém fez isso antes se, no mundo inteiro, uma em cada cinco pessoas convive com uma doença hepática crônica? Difícil entender. Ora, aqui não deveria ser muito diferente. "É que, embora os problemas do fígado tenham crescido, ainda são poucas as equipes que trabalham com eles", tenta justificar o biólogo André Gustavo Oliveira.

Professor do departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) — que, por sua vez, integra o INCT Nanobiofar (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Nano-Biofarmacêutica), o qual investiga como a nanotecnologia pode nos ajudar a ter medicamentos de liberação controlada —, André Oliveira observa que a quantidade de médicos hepatologistas no país ainda é pequena. "E o número de pesquisadores que investigam esse órgão é menor ainda", nota.

Ele, aliás, é um desses cientistas. Fui perguntar o que anda estudando e ouvi uma resposta fascinante: "A conversa entre o fígado e o cérebro". Um bate-papo ligeiro, do qual o intestino faz parte, em que um conta para o outro a composição do alimento que você acabou de comer, para receber, lá do alto, a orientação exata sobre como metabolizar suas moléculas. Essa comunicação pode nos ajudar a entender como o fígado acumula gordura e, com isso, inflama e, daí, adoece.

Não à toa, André Oliveira se envolveu intensamente no levantamento, que processou tabelas e mais tabelas para encontrar respostas capazes nortear campanhas e políticas públicas. Mas que também revelou um mistério, no qual é bom a gente ficar de olho.

A taxa de mortalidade disparou. Por quê?

"De 2019 para cá, o número de mortes tem sido, mais ou menos, constante. No entanto, a mortalidade aumentou de um modo bastante preocupante", informa o pesquisador.

Para um leigo, como eu, esse é o tipo de frase que dá um nó na cabeça. Mas quer dizer o seguinte: o número de mortes praticamente não cresceu porque há uma ligeira redução nos casos de doença hepática, modo geral. "Porém, quem já está doente do fígado anda morrendo mais", informa o biólogo.

Continua após a publicidade

Coincidência ou não, a mortalidade passa a subir no período da pandemia. Será que dá para especular que o fenômeno tem a ver com mudanças de comportamento, como o maior consumo de bebida alcoólica no período de isolamento? Bem, o álcool costuma fazer um estrago nas células hepáticas, mas não assim tão depressa. Então, não se pode afastar a suspeita de que o próprio vírus da covid-19 tenha deixado o fígado mais vulnerável — ou até mesmo a enxurrada de remédios usados nos casos mais graves da infecção. "Precisamos ficar atentos a isso nos próximos anos", diz André Oliveira.

Diferentes males, de norte a sul

Ao escarafunchar os registros do DATASUS, os pesquisadores mineiros foram atrás do que está na CID, a classificação internacional de doenças. Portanto, anotaram os casos de doença alcóolica do fígado, fibrose e cirrose, câncer e hepatites virais crônicas, como as do tipo B e as do tipo C.

No fundo, um problema às vezes leva a outro. Por exemplo, os vírus da hepatite podem, com o tempo, deflagar tumores, assim como a doença alcóolica é capaz de culminar em cirrose.

"De todo modo, há uma limitação, porque a CID ainda não reconhece a doença gordurosa do fígado", esclarece o pesquisador. Para se ter noção, de 20% a 30% dos brasileiros acumulam gordura nas células hepáticas. E, aqui, ela não está sendo levada em conta.

Tirando isso, no Nordeste, a doença hepática alcóolica é a principal causa de mortes, entre os males que acometem o fígado. Já no restante do país, a grande ameaça é o câncer hepático. "Assim, uma campanha pela saúde do fígado talvez tenha de abordar a bebida quando dirigida aos nordestinos", exemplifica André Oliveira.

Continua após a publicidade

Homens e mulheres

Na comparação entre gêneros, eles têm mais fibrose, cirrose e doença alcoólica. Já elas, sofrem principalmente de câncer. Mas não é só isso.

Nos homens, o risco de morte por uma dessas doenças começa mais cedo, por volta dos 30 anos, como revela o estudo. "E esse risco passa a ser considerável a partir dos 40", informa André Oliveira, lembrando que os rapazes talvez se exponham mais — e, também, mais cedo — a fatores que levam a esses males. O olhar dirigido ao fígado deles deveria ser mais precoce.

Já nas mulheres a ameaça de morrer por um problema do fígado só costuma aumentar depois dos 60 anos. "Talvez porque esses tumores hepáticos avancem em velocidade mais lenta", comenta o biólogo.

A comparação entre raças

"Nas pessoas brancas, o câncer é a maior causa de morte por doença hepática", diz, ainda, André Oliveira. Enquanto, nos indivíduos de origem asiática, o que despontou foi a doença alcoólica do fígado. Não é surpresa: a literatura científica mostra uma maior vulnerabilidade do fígado dos orientais ao álcool.

Continua após a publicidade

O triste é ver que os negros estão sub-representados. Pelos números, eles têm menos doenças de fígado. Mas será isso mesmo? "Provavelmente, a discrepância é pela dificuldade de acesso da população negra aos serviços de saúde", lamenta o pesquisador. Ou seja, há menos registros porque há menos oportunidade de diagnóstico.

Os dados eram ainda mais escassos quando os cientistas de Minas foram examinar a situação dos povos originários. "A gente não sabe como anda a saúde hepática deles. E, mesmo com esse estudo, continua sem saber", diz o biólogo.

Em outros países, as doenças hepáticas crescem desembestadas nas populações indígenas. Dá para arriscar alguns motivos, da exposição a substâncias tóxicas que degradam o meio ambiente à falta de adaptação à dieta com alimentos ultraprocessados, passando pelo consumo de álcool.

Uma concentração nos transplantes

O trabalho também revela que o governo brasileiro gasta, todo ano, cerca de 300 milhões de reais somente com o tratamento das doenças hepáticas. Parece uma montanha de dinheiro, mas mal arranha o orçamento de 231 bilhões do Ministério da Saúde.

Além disso, 68% desses recursos são destinados aos transplantes de fígado. Eles, claro, precisam ser realizados, mas são a etapa final, quando a doença já avançou barbaramente.

Continua após a publicidade

"Não temos um método fácil de diagnóstico precoce", analisa André Oliveira. "É muito difícil para o médico pegar um paciente em estágio inicial. E a biópsia, além de inviável para um número maior de pessoas, é um exame bem invasivo."

Para ele — puxando merecidamente a sardinha para o seu lado —, a saída seria um maior investimento em pesquisas para buscar marcadores biológicos e outras técnicas para fazer o diagnóstico cedo e de um jeito mais simples.

No que diz respeito aos transplantes, o estudo revela um vazio: não há registros no Norte do país e, aí, simplesmente porque não há centros habilitados a fazê-los por lá, segundo André Oliveira. Nem é preciso dizer a dificuldade para um paciente grave se deslocar de uma região para outra a fim de ser transplantado.

Dê uma chance

Na mitologia grega, o titã Prometeu roubou o fogo dos deuses para entregá-lo a nós, reles mortais. Zeus não gostou nadica daquilo: acorrentou Prometeu e seu castigo era a visita de uma águia que, dia após dia, vinha bicar o seu fígado, o qual voltava ao normal à noite. "O paciente hepático é um Prometeu", compara o biólogo

Tem razão. O fígado é um órgão com uma fabulosa capacidade de regeneração. No laboratório, por exemplo, quando André Oliveira tira até 70% do fígado de camundongos, dois dias depois ele já está no peso original. Mas alguns dos nossos hábitos são a "águia" — beber demais, consumir alimentos ultraprocessados, expor-se a substâncias tóxicas e outros agressores. Chega uma hora que a capacidade de se recuperar se esgota.

Continua após a publicidade

Uma das razões do estudo da UFMG é, ao mostrar as ameaças, lembrar que temos de dar uma chance para o nosso fígado se regenerar.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes