Condição a fazia ter crise de riso involuntária: 'Olhava pra alguém e ria'

Quando Séfora Coelho Reis era bebê, tinha episódios de riso com respiração ofegante. Parecia mais uma graça da fase. Entre 4 e 5 anos, ria sem parar olhando fixamente para alguém, o que gerava incômodo e repreensão por parte da família. Perto dos 7, ela teve a primeira crise convulsiva e, mais tarde, descobriu-se que tudo estava interligado.

Hoje com 17 anos, a jovem passou por uma cirurgia no começo de abril para corrigir uma malformação congênita rara que causa epilepsia. A princípio, o procedimento seria feito em São Paulo, no particular, por cerca de R$ 430 mil. Mas foi possível realizá-lo sem custos para a família, pelo SUS, em Salvador (BA).

A VivaBem, a secretária escolar Cleivia Silva Reis, 45, mãe de Séfora, conta a história.

"Tudo começou em abril de 2013, quando ela teve crises convulsivas tônicas e de ausência. No dia da primeira convulsão, próximo dos 7 anos, eu estava arrumando ela para ir para a escola e ela lateralizou, teve crise de ausência. Fiquei louca na hora.

Entrei em contato com o pediatra dela na época, que orientou procurar um neurologista.

Depois que a gente entra numa situação dessa, vê que ela tinha sintomas antes que não percebia. Quando Séfora era bebê, olhava para a mão, ficava ofegante, respirava profundamente e depois começava a rir. Ela ria demais.

De 4 a 5 anos, às vezes na mesa almoçando, ela olhava para alguém fixamente e ria. Eu reclamava, repreendia achando que era infantilidade de criança. Relatava isso para os médicos e alguns ignoravam.

Preconceito

À medida que ela foi crescendo, as crises de risada foram diminuindo, mas aumentaram as crises em que ela apagava, saía do ar, começava a tremer os lábios e falar coisas desconexas. Elas iam aumentando de intensidade, principalmente no período menstrual e pré-menstrual.

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Séfora começou a ter perdas na escola, passou de aluna nota dez para sete. Hoje ela é bem amparada, tem assistente na escola desde 2018. Também afetou o cognitivo, que é mais infantilizado hoje. Ela tem noção que vai fazer 18 anos, mas não tem atitudes para uma jovem de 17.

A questão psicológica está muito afetada também. Às vezes, há problema do colega falar algo dela, não entender ela bem, e a própria família às vezes tem essa questão do preconceito.

Mesmo que seja de uma forma que a pessoa não queira, tem falta de compreensão. Converso muito com ela, que já chegou a questionar o fato de não ter amigos.

Procura por respostas

Minha busca foi imensa, em toda a região da Bahia, em Salvador, em todos os neurologistas. Séfora usou muitas medicações, mas não tinha resultados positivos. Ela tomou canabidiol com 15 anos e também não resolveu.

Eu relatava aos médicos que, mesmo com medicações, continuava tendo crises. Muitos faziam ajustes de doses, outros retiravam ou acrescentavam, faziam ressonância, eletroencefalograma, mas nunca tinham feito uma investigação a fundo.

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O último médico que passei aconselhou levar Séfora a uma clínica especializada em epilepsia para fazer videoeletroencefalograma. Ela precisava fazer 48 horas de exame, mas em Salvador só faziam oito.

Encontrei uma clínica em São Paulo, onde ela fez ressonância, o exame de vídeo, de 24 horas, e mapeamento genético em fevereiro de 2022. Gastamos até o que não tínhamos, quase R$ 14 mil na época.

A médica falou que Séfora tinha crises até dormindo. Em agosto de 2022, ela me ligou e falou que precisava fazer uma teleconsulta, porque tinham encontrado algo que podia ser a grande causa das crises refratárias (resistentes a medicações) e que era tratável. Eu chorei demais.

A equipe não se contentou apenas com o ajuste de dose, queriam descobrir a causa.

Tratamento de R$ 430 mil

Foi descoberto o hamartoma hipotalâmico, pequeno nódulo de 0,6 centímetros no hipotálamo. O tratamento seria a cirurgia, mas veio o grande problema: quanto seria tudo isso? Em torno de R$ 430 mil, em São Paulo. É um valor surreal para mim e para o pai dela.

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Diante de dificuldades financeiras —e naquele momento eu não conhecia nenhum tratamento desse na Bahia—, pleiteamos junto com o estado, através de ação judicial, o custeio dessa cirurgia em São Paulo.

Foi no início de maio de 2023. Fui chamada, porque o estado queria saber se tinha profissional disponível para fazer o procedimento. Mas na primeira consulta, o médico disse que não tinha condições, porque nunca tinha feito, e não tinha recurso.

Séfora com a equipe do Hospital Geral Roberto Santos (BA)
Séfora com a equipe do Hospital Geral Roberto Santos (BA) Imagem: Arquivo pessoal

Com 15 dias, recebi uma ligação do Hospital Geral Roberto Santos falando que o doutor Leonardo tinha se interessado pelo caso e queria fazer uma consulta.

Em junho do ano passado, ele falou que conseguia fazer a cirurgia em Salvador, só precisava de apoio financeiro do estado, porque era uma cirurgia de alta complexidade que envolvia muitos insumos caros.

No dia 22 de março, a Sesab (Secretaria da Saúde do Estado da Bahia) me ligou, dizendo que o estado tinha acatado a solicitação do médico.

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Fomos para Salvador no dia 24, chegamos no dia 25, e Séfora foi internada no hospital, que me acolheu muito bem. A cirurgia ia acontecer na quinta, mas os insumos não chegaram e marcaram para o dia 2 de abril, quando tudo aconteceu.

Cirurgia no cérebro

Foi um mix de sentimentos, mistura de medo, alegria. Eu fiquei assustada. Quando o doutor Leonardo me falou que faria a cirurgia, fiquei insegura, mas ao mesmo tempo vi a segurança dele e da equipe.

Perguntei se ele já tinha feito essa cirurgia em Salvador, ele falou que não, que a de Séfora seria a primeira. Mas ele me deixou muito segura depois. Sobre acordarem ela durante a cirurgia, a única coisa que perguntei foi: ela vai sentir dor quando acordar?

Para mim, foi uma honra ela ter feito a cirurgia na Bahia, pelo SUS. Saí do hospital com vários amigos. Agora, estou aguardando a recuperação dela para que, posteriormente, ela possa ir se libertando dos medicamentos e possamos afirmar com veemência que a cirurgia foi consolidada com sucesso.

Ela teve apenas uma crise após a cirurgia, que era normal, mas após isso está ótima. Séfora está muito elétrica e, em breve, volta às atividades na escola. Cada dia que ela não teve crise é um dia de vitória para mim e para ela."

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O que é hamartoma hipotalâmico?

É uma malformação congênita. A pessoa já nasce com a condição, que pode manifestar sintomas ou não.

É um conjunto de neurônios que não está no lugar que deveria. O nódulo não vai crescer, não vai espalhar ou se tornar maligno. Leonardo Avellar, neurocirurgião do Hospital Geral Roberto Santos

O médico diz que, no caso de Séfora, os neurônios que não deveriam estar no hipotálamo geravam as crises convulsivas, manifestação que ocorre na maioria dos casos.

Diagnóstico pode ser difícil. Com nódulo muito pequeno, os exames não identificam a malformação, o que atrasa a identificação e tratamento adequado.

Crises mudam. É característico da condição o surgimento de crises gelásticas (de riso sem motivo) que, com o tempo, evoluem para outras formas de convulsões.

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As crises podem ser:

Tônicas: quando pernas, braços ou o corpo endurece.

Mioclônicas: há tremor dos membros; pode ser isolada ou em associação com as tônicas.

Parciais: manifestação em apenas um lado do corpo, geralmente o oposto ao lado do cérebro onde o hamartoma está.

Nas crises parciais, ocorrem os movimentos involuntários, mas a pessoa mantém a consciência e pode, inclusive, falar. Quando a crise é generalizada, todo o corpo tem manifestações e há perda de consciência.

Tratamento. As crises podem ser controladas com medicações, mas no caso de Séfora, o quadro era resistente a remédios. Então, optou-se pela cirurgia.

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Cirurgia é delicada. O procedimento visa causar uma lesão no hamartoma para impedir as crises. A estratégia usada combinou exames de imagem para formar uma espécie de mapa do cérebro com sistema de coordenadas a fim de encontrar o ponto exato do nódulo. O processo é bem parecido com o da cirurgia para doença de Parkinson.

A agulha que fará a lesão é posicionada no local. Antes de lesionar o hamartoma, a pessoa que antes estava sedada precisa ser acordada durante a cirurgia para que os médicos façam testes.

Eles fazem uma lesão reversível em alguns pontos para identificar se a paciente continua movimentando os membros, falando e enxergando. Depois, a pessoa é sedada novamente para a conclusão da cirurgia.

Se lesiono o ponto errado, é uma tragédia. O centro da saciedade fica ali perto e pode alterar a fome. Se lesar o núcleo relacionado ao comportamento, pode ter alterações. Tem de ser 100% preciso, não pode ter um milímetro de erro. Leonardo Avellar, neurocirurgião

Essa foi a primeira cirurgia de hamartoma hipotalâmico que o médico Leonardo Avellar fez, e a primeira realizada na Bahia pelo SUS. "Aceitei fazer porque acho que não é impossível. É um compromisso social com o local onde estou."

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