Lúcia Helena

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Reportagem

Autismo: alterações na urina poderão ajudar no diagnóstico

E se eu contar que a urina de pessoas com TEA, o transtorno do espectro autista, tem porções diferentes de certas moléculas em sua composição, como as dos aminoácidos? A descoberta, feita por cientistas do Instituto Butantan, em São Paulo, será capaz de levar a um teste simples, não invasivo, para ajudar tanto no diagnóstico quanto no acompanhamento de cada caso.

O estudo, que acaba de sair no Biomarkers Journal, no fundo também reforça a ideia de que a alimentação é extremamente importante para quem autismo, sendo capaz de interferir para o bem e para o mal, melhorando ou piorando o quadro.

Aliás, foi justamente graças a um trabalho sobre alimentação que o farmacêutico Ivo Lebrun, do Laboratório de Bioquímica e Biofísica do Butantan, tomou contato com o autismo. Pesquisador há 42 anos, ele se formou e iniciou sua carreira em Ribeirão Preto, até se mudar para a capital paulista para um doutorado na USP (Universidade de São Paulo) nos anos 1980. Nessa época, prestou concurso para se tornar pesquisador do Instituto. "Nesses anos todos, investiguei muitas coisas, inclusive animais peçonhentos, Mas, em comum, diria que meu negócio são as moléculas", define.

E foi falando em moléculas que Lebrun teceu alguns comentários, ao participar da banca de pós-graduação da nutricionista Nádia Isaac da Silva, pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. O tema era alimentação e autismo. "Ela deve ter achado minhas observações pertinentes, porque me procurou com interesse em tocar algum projeto nessa linha", conta. Assim, em 2017, tudo começou.

Em busca de biomarcadores

"Sabemos que o TEA envolve uma predisposição genética. Portanto, no mundo já existem diversos grupos buscando marcadores de genes capazes de desencadear o autismo", relembra Lebrun. No Butantan, eles não iriam por esse caminho.

Biomarcadores são moléculas presentes no organismo que serviriam como pistas, por assim dizer, de algo que está acontecendo em sua intimidade, eventualmente até mesmo uma doença.

"No caso dos marcadores genéticos, precisamos lembrar que o autismo não é como a trissomia do 21, para eu fazer uma comparação", diz o cientista. "Ora, quem tem essa alteração no cromossomo nascerá com a síndrome de Down e ponto. Já no TEA, não só há diversos genes envolvidos, como eles talvez não estejam se expressando."

Ou seja, há pessoas que possuem esses genes, mas não se tornam portadoras do autismo. "Logo, mesmo que cheguem a bons marcadores genéticos, eles poderão indicar uma tendência somente", conclui o pesquisador. "Os genes relacionados ao autismo precisariam ser ativados por fatores ambientais. E a alimentação possivelmente é um deles", especula.

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Essa desconfiança tem lá os seus bons motivos. Uma deles é que o TEA envolve uma disbiose importante, isto é, um desequilíbrio entre as bactérias intestinais, além alterações no metabolismo. Essas alterações, por sua vez, poderiam se refletir em um jeito diferente de processar aminoácidos — os elos de uma longa corrente, que seria uma proteína.

"Queríamos ver o que estava acontecendo com essas moléculas, mas descartamos estudá-las no sangue de cara", conta o doutor Ivo Lebrun. "Sejamos honestos: ninguém gosta de tirar sangue. Agora, imagine a dificuldade para obter amostras sanguíneas de uma criança com autismo! Melhor seria partir para a urina. Nós apostávamos que ela traria muita informação". Apostaram e acertaram.

Como foi o estudo

Os pesquisadores do Butantan foram atrás de diferenças na urina de 22 crianças de 3 a 10 anos diagnosticadas com TEA, que coletaram o material sem sair de casa. Ele, em seguida, era recolhido e ia parar direto em um freezer, para que os pesquisadores pudessem esmiuçar suas moléculas mais tarde, sem nenhuma delas se perder.

Fizeram a mesma coisa com 22 crianças neurotípicas da mesma faixa etária, sem TEA, nem outro transtorno qualquer. Elas formaram o que, na ciência, é chamado de grupo controle, servindo de parâmetro para comparações.

O que se notou: nos meninos com autismo, a quantidade de quatro aminoácidos estava muito aumentada em relação ao que se via no xixi de crianças neurotípicas. "Um deles, a arginina, tem um papel de destaque em diversos processos metabólicos", afirma o doutor Lebrun. "Isso nos ajuda a entender algumas comorbidades do autismo, como os transtornos gastrointestinais, relativamente comuns nos pacientes", observa.

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Os outros aminoácidos aumentados são a leucina, a treonina e, finalmente, a glicina. Esta última é capaz de inibir certos neurotransmissores e, ainda, excitar alguns neurônios na fase de desenvolvimento do feto, fenômeno que poderia tornar o cérebro mais vulnerável a um excesso de estímulos.

"Outros aminoácidos, por sua vez, estavam reduzidos na urina dos meninos com autismo", conta o cientista, se referindo ao ácido aspártico, que participa da regulação da conversa entre os neurônios; à histidina, que ajuda a balancear períodos de vigília e de sono; à alanina e à tirosina.

Parênteses: na urina, também foram encontrados outros biomarcadores do autismo, digo, além dos aminoácidos mencionados. Eles irão render artigos científicos também.

Um futuro teste?

Esta é a pergunta da vez. "Nosso trabalho mostra que a urina tem todo o potencial para isso, mas jamais substituiria o diagnóstico clínico", esclarece Ivo Lebrun. "Seria um exame complementar, para dar maior segurança aos médicos."

Hoje, os especialistas reparam, entre inúmeros sinais, se a criança evita contato visual, se tem alterações no desenvolvimento da linguagem ou se não responde quando é chamada. Ela pode fazer movimentos repetitivos e também agitar os dedinhos das mãos com frequência.

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Alguns meninos e meninas com TEA insistem em repetir frases que ouviram em desenhos animados, por exemplo, e apresentam um interesse exagerado por determinados assuntos, como se só quisesse saber deles. Podem se isolar dos colegas de classe na hora do recreio, se irritar com barulhos e com o contato físico, perder o prumo se algo sai de sua rotina rígida. Não raro, ignoram quando estão fazendo algo perigoso.

Tudo isso, junto e misturado, pode ser TEA. E, às vezes, quase nada disso — eis a questão. Explico. Há quadros leves, como os da Síndrome Asperger, em que a pessoa demonstra apenas uma inabilidade social. Outros, moderados, são mais frequentes e um pouco mais claros. E, finalmente, existem os casos graves, quando a criança é capaz até mesmo de agredir a si própria.

"O autismo sempre existiu, mas no passado o diagnóstico era feito quase que exclusivamente nos quadros graves. E até hoje é mais fácil apontar o TEA quando ele é grave ou moderado do que flagrar o transtorno leve. Amanhã ou depois, o exame de urina será uma ferramenta a mais, especialmente útil para delinear casos mais leves dentro do espectro autista, como uma peça a mais para o médico montar o seu difícil quebra-cabeças", é o que o pesquisador pensa.

Mexer na dieta ajudaria?

Acompanhar a evolução dos pacientes seria outra provável finalidade de um teste de urina. "Mas, para tudo isso, precisamos repetir o estudo com um grupo maior de crianças. Ainda não encontramos parcerias para isso, mas é o que desejamos", explica o pesquisador do Butantan.

Na turminha de 22 meninos que foram voluntários da primeira investigação, havia portadores de TEA leve, moderado e grave. No entanto, como admite Ivo Lebrun, é um número reduzido para existir clareza se as alterações nas quantidades de aminoácidos seriam mais intensas conforme aumentasse a gravidade do quadro. Será?

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"Se for assim, dará para notar, pela urina, se determinado tratamento está, de fato, ajudando aquele indivíduo com autismo", comenta. Outra hipótese que os cientistas gostariam de checar é se determinadas intervenções na dieta seriam capazes de diminuir as diferenças moleculares entre a urina de portadores de autismo e crianças neurotípicas. Em outras palavras, melhorando o controle sobre o transtorno.

"Há indícios de que o glúten e a caseína do leite sejam capazes de tornar as manifestações do autismo mais severas e que, por sua vez, retirá-los do dia a dia com supervisão de um nutricionista poderia melhorar o TEA". Só o tempo e a urina é que poderão dizer.

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