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Blog da Lúcia Helena

Será que o anti-inflamatório colchicina vai ajudar no combate à covid-19?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

29/01/2021 08h55

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Dá para entender as pessoas receberem no último final de semana as notícias sobre o uso do anti-inflamatório colchicina na covid-19 como uma promessa de bonança. Nenhuma outra tempestade caiu sobre nós de maneira mais furiosa, deixando os tempos tão cinzentos, do que a tal tempestade de citocinas.

A expressão, que já soa conhecida para os leigos desde que o pandemia começou, descreve a reação intempestiva do sistema imunológico, desencadeada pela presença do novo coronavírus no organismo de parte dos indivíduos infectados por ele.

Não acontece com todas as pessoas — e eis a maior crueldade, porque tem gente que então se ilude achando que esse vírus não é de nada e que capricha nas atitudes capazes de espalhá-lo por aí. Mas, para uma parcela dos acometidos pela covid-19, o tempo realmente fecha.

As células que mais participam do processo inflamatório na infecção pelo novo coronavírus são neutrófilos e macrófagos — elas que produzem as tais citocinas. Inicia-se então o que os médicos descrevem como um processo inflamatório difuso, porque o alvo não é um órgão nem outro. Parece acontecer da cabeça aos pés. E é isso que, se não mata, fere, deixando sequelas que a ciência ainda mal entende.

O que se sabe muito bem é que esse processo tempestuoso atinge em cheio o endotélio, o revestimento interno dos vasos, um dos mais complexos tecidos que temos no corpo. E, aí, sobra para os pulmões, os rins, o intestino, o coração... Sobram citocinas, melhor dizendo.

"O endotélio inflamado altera a permeabilidade dos vasos", descreve o cardiologista Protásio da Luz, pesquisador e professor sênior do InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Quando isso acontece, as citocinas extravasam. Esse extravasamento deixa os pulmões tomados de líquido derramado dos vasos e, assim inundados, os alvéolos não têm como fazer suas trocas gasosas a contento.

Aliás, se duvidar, nada parece ter condições de funcionar direito. "Afinal, não é só nos pulmões que o fenômeno acontece", reforça o professor. "É a mesma situação em todos os outros órgãos. E outra coisa: o processo inflamatório também interfere na coagulação do sangue. Por isso as pessoas com a covid-19 podem ter tromboses, acidente vascular cerebral e assim por diante", conta o cardiologista.

Não à toa, o que os médicos mais querem é calar essa tempestade de qualquer maneira. Fazem inúmeras tentativas nesse sentido por meio de estratégias de tratamento que a ciência foi comprovando nesse período duro. Usam anti-inflamatórios como corticoides quando notam que as citocinas parecem despencar de todos os cantos, feito enxurrada no organismo de quem está no leito de uma UTI. Mas a lógica aponta que o mais incrível seria evitar a tal tempestade em seu prenúncio.

"Por isso mesmo, a ideia seria ter uma droga oral para ser tomada nos primeiros dias após o diagnóstico de covid-19 por aquele indivíduo que está, no máximo, com sintomas leves, a fim de reduzir ou até mesmo eliminar esse processo inflamatório", conta o professor Protásio da Luz, convidado a ser o pesquisador principal e coordenar o braço brasileiro do ColCorona, estudo promovido pelo Montreal Heart Institute, no Canadá, realizado para investigar o uso de um remédio, a colchicina, usado há décadas por pacientes com doenças inflamatórias como gota, pericardite e artrite reumatoide.

A pesquisa também envolveu, além dos pesquisadores brasileiros e canadenses, equipes dos Estados Unidos, da Grécia, da Espanha e da África do Sul que, juntas, reuniram 4.159 pacientes com covid-19 comprovada pelo teste de PCR: "Houve uma redução significativa do desfecho composto por morte e hospitalizações, bem como uma diminuição na necessidade de ventilação mecânica", faz questão de declarar o professor. "É o primeiro estudo apontando luzes sobre a possível eficácia de um anti-inflamatório nas fases iniciais dessa doença", diz Protásio da Luz.

Os resultados, anunciados no sábado pela área de comunicação do instituto canadense e com grande repercussão na mídia, causaram furor com os números: a colchicina teria cortado a necessidade de hospitalizações em 25%, a necessidade de ventilação mecânica em 50% e as mortes, em 44%. Mas não é bem assim.

Já anteontem, com a divulgação do pre-print do artigo, alguns cientistas pediram a todos nós um pouco menos de entusiasmo e um pouco mais de cautela, após uma leitura atenta do texto completo e original. É que uma parte dos números mencionados, que enchem os olhos à primeira vista, pode não ter tanto significado assim na prática. Problema de interpretação dos resultados.

Aquela redução de mortalidade alardeada de 44%, por exemplo, seria na verdade uma faixa que vai de 1%, algo que não faria diferença, aos tais 44%. Mas, bom esclarecer, apesar do engano na divulgação, o estudo em si foi conduzido de maneira séria — ele é o que os cientistas chamam de duplo-cego randomizado.

Um estudo assim é bem diferente de um médico ficar apenas observando o que acontece com pacientes no seu consultório particular quando ele lhes receita isso ou aquilo precocemente — ora, observar todo mundo pode, mas ninguém deve chamar esse exercício de evidência.

O trabalho com a colchicina é trigo perto desse joio. E ela tem potencial para um dia entrar no campo de batalha contra a covid-19, quem sabe, a fim de evitar hospitalizações. Em relação a impedir que os doentes já internados precisem de ventilação ou que morram, ninguém tem por enquanto como saber se ela faz alguma diferença. Essa foi a confusão com os números, quando o instituto de Montreal soltou o aviso para a imprensa.

Como foi o estudo

Protásio da Luz sempre dividiu a sua carreira entre o consultório e a pesquisa científica com idêntica paixão. E ela transparece quando o cardiologista fala do estudo ColCorona, que, além do InCor, contou outras três instituições brasileiras, enaltecendo todos os pesquisadores que se dedicaram à empreitada, cerca de 20 deles em seu time. "Aqui no InCor nós conseguimos o maior número de pacientes brasileiros, mais de 120, graças a uma parceria com a Prefeitura de São Paulo", conta o professor.

No caso, quem fazia exame de PCR nas UBSs da capital (Unidades Básicas de Saúde) e tinha um resultado positivo era indicado para participar. Não deixe esse detalhe passar despercebido: "Só pessoas com diagnóstico confirmado de covid-19 por esse exame eram aceitas", repete Protásio da Luz.

"Por que ficamos apegados no resultado do PCR: porque não podemos dizer que um remédio funciona para a covid-19 se lhe damos, indistintamente, a qualquer um que tem febre, tosse ou outro sinal suspeito. Pode ser outra doença infecciosa qualquer. A pessoa, iludida, acha que não piorou por ter sido medicada. Mas ela não iria piorar nem se ficasse tomando apenas chimarrão", ensina o professor.

Ele ainda esclarece: "Vamos lembrar que ninguém está falando de pré-tratamento nesse estudo. Prevenção é só com a vacina. Pré-tratamento, que é quando você dá um remédio sem saber se a pessoa tem de fato a doença, é outra história."

No braço brasileiro do estudo, os pacientes começaram a receber o tratamento experimental no máximo 48 horas após o teste de RT-PCR cravar o diagnóstico da infecção. Durante três dias, os participantes receberam 0,5 miligrama de colchicina a cada 12 horas. Nos 27 dias subsequentes, completando um mês exato de tratamento, passaram a engolir apenas uma dose dessas diariamente.

Ou melhor, uma parte dos participantes fez isso, porque outra parte engoliu placebo e ninguém sabia quem era quem. Nem os pesquisadores daqui sabiam, diga-se, que enviaram às cegas os dados de cada um dos voluntários para serem analisados no QG dessa investigação, no Canadá.

Não sei se faz ideia, mas a lista de quem recebe um remédio verdadeiro em um estudo duplo-cego é um segredo guardado a sete-chaves, só revelado no instante final, depois que os cientistas observaram o que aconteceu nos dois grupos. Ah, sim, o adjetivo "randomizado" significa que os pacientes foram sorteados para ficar de um lado, no time colchicina, ou no outro. Não há margem para a mutreta de querer induzir determinado resultado nesse tipo de experimento.

O professor Protásio me conta que, lá pelo 15º dia, os pesquisadores ligavam para os participantes, fazendo perguntas sobre o seu estado de saúde. E repetiram o telefonema no 30º dia, o último do tratamento.

Possível forma de atuação

Existem muitos anti-inflamatórios nas prateleiras das farmácias e nos armários dos hospitais e, até o momento, todos deram com os burros n'água quando cogitados para tratar a covid-19 no início. Sem contar que todos têm efeitos colaterais bem importantes.

Parênteses para um aviso: a colchicina não é água com açúcar. Ela também oferece um belo risco de efeitos adversos, de diarreias à embolia pulmonar. Quem se trata com essa droga para domar um quadro de gota, por exemplo, precisa de um acompanhamento médico estreito.

E, até por isso, uma dúvida que tive foi a respeito do tempo um tanto prolongado do tratamento, já que olho assim de fora do mundo acadêmico. Afinal, se o isolamento de quem foi infectado pelo Sars-CoV-2 dura 14 dias, por que engolir o remédio por um mês inteiro?

"Preferimos um tempo amplo para termos a certeza da ação anti-inflamatória na covid-19. Porque sabemos que a inflamação perdura no organismo mesmo depois de ele ter se livrado do vírus. Tanto que podem surgir inúmeras sequelas", justifica Protásio da Luz.

Segundo o professor, a colchicina atua nos microtúbulos, estruturas das células que têm a ver com o seu desenvolvimento e a sua proliferação. "Mais especificamente, ela bloqueia os microtúbulos de células de defesa, como os neutrófilos e os macrófagos, segurando a onda, ou seja, diminuindo a sua multiplicação e, consequentemente, reduzindo a resposta imunológica exagerada por trás de todas as complicações da covid-19", explica o cardiologista líder da pesquisa.

Possível vantagem: menos internações

O médico intensivista Luciano César Azevedo, pesquisador do Hospital das Clínicas e do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, foi uma das vozes que criticaram o press-release inflando os resultados do trabalho.

"Precisamos deixar claro que o estudo não comprova uma redução de ventilação e de mortes na população inteira, que foi a hipótese que levantaram no início. Ele é negativo nesse sentido", me disse ele, querendo dizer que não trouxe resultado algum. "E, sim, os dados nos pacientes com resultado positivo de RT-PCR são importantes, porém a significância estatística é bem pequena", opina.

Para o doutor Luciano Azevedo, que ainda não acha interessante a colchicina ser incorporada à prescrição para os pacientes na fase inicial da covid-19, o certo seria o trabalho ter um número ainda maior de participantes, como os 6.000 previstos inicialmente.

No final do estudo, 30 pacientes precisaram de ventilação mecânica e 14 morreram. É uma quantidade diminuta para se responder se a queda desses desfechos ruins foi resultado da medicação ou do acaso.

Esclarecimento neste ponto, só para você não cometer a loucura de minimizar a covid-19: faz sentido ser uma quantidade tímida de mortes, porque é a minoria do total de infectados pelo novo coronavírus que se dá mal pra valer. Mas, mudando o olhar para a escala da vida real, ora, quando temos uma doença se espalhando por dezenas de milhares de pessoas por dia, essa minoria não é um grupo nada desprezível. Ela significa as mais de mil vidas perdidas nas mesmas 24 horas, tragédia a qual amargamos, noite após noite quando divulgam a escalada do total de óbitos.

Nesse quadro sombrio, o cardiologista José Rocha Faria, professor da PUC do Paraná, recebe com alívio os resultados da pesquisa com a colchicina: "A discussão em que estamos entrando aqui é entre a relevância clínica e a relevância estatística", opina. "Frente ao cenário atual, com hospitais e UTIs ficando lotados pelo país inteiro, a possibilidade de você reduzir em 25% a necessidade de internação justifica o uso clínico, sim. Essa diminuição é muito relevante diante da sobrecarga do sistema de saúde."

O professor Rocha Faria reconhece que os demais dados sobre redução de necessidade de intubação e menor mortalidade não fizeram muita diferença. "E esse é um problema, digo, quando a instituição faz a divulgação para a imprensa antes e não mostra os dados completos", acredita.

"Daí, se o artigo apresenta algo diferente, vem aquela ducha de água fria e a tendência passa a ser desqualificar todos os achados do trabalho", diz ele, que não acha isso certo. "Essa redução de 25% de hospitalizações nos pacientes com PCR positivo me faz pensar que a colchicina é algo para ser incorporado naqueles indivíduos comprovadamente infectados que sabemos pertencer aos grupos com maior risco de complicação."

Discordâncias assim fazem parte da ciência. E, como diz o professor Protásio da Luz, "o bom de fazer pesquisa científica é que ela mira o novo."

A novidade é o possível uso da colchicina, que ainda vai dar o que falar. Merecidamente, se a discussão é assim, no alto nível da busca por evidências científicas, sem as quais nada deveria valer.