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"Meninas gritam e ninguém ouve", diz psicóloga que combate estupro infantil

Anne Cleyanne, finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Conscientização e Acolhimento - Julia Rodrigues/Uol
Anne Cleyanne, finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Conscientização e Acolhimento Imagem: Julia Rodrigues/Uol

Colaboração para Universa

13/07/2022 04h00

A violência contra mulheres e meninas costuma vestir muitos disfarces: amor, carinho, educação. Na Amazônia, ela também vem sob a fantasia de folclore. Conta uma lenda local que o boto-cor-de-rosa, um golfinho de água doce, tem o poder de se transformar em homem. Ao cair da noite, ele surge vestido de terno branco e chapéu, vagueia pelas vilas e encanta mulheres. Algumas ficam grávidas do bicho. Trata-se, na verdade, de um enredo para acobertar crimes de estupro e incesto na região Norte do país.

O assombro diante dessa história deu origem à Associação Filhas do Boto Nunca Mais. Criada pela psicóloga Anne Cleyanne Alves, 33, a iniciativa atua principalmente em comunidades ribeirinhas. O objetivo é promover a conscientização local sobre violência contra mulher, desmistificar os crimes que são tão comuns e batalhar por políticas públicas. Só para se ter uma ideia, de janeiro a abril deste ano foram 244 estupros de vulneráveis em Rondônia, segundo o Observatório do Desenvolvimento Regional do estado. Pelo trabalho, a psicóloga é finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Conscientização e Acolhimento.

Parece que meninas e mulheres gritam e ninguém ouve. Todos dizem: 'isso é comum'. Tem que parar de ser. A naturalização da violência pelo poder público não pode acontecer. Anne Cleyanne Alves, psicóloga

Em 2011, Anne era ainda estudante de psicologia quando assistiu a uma palestra sobre violência doméstica e o mito do boto. Ficou revoltada com o que ouviu. Quis entender melhor por que os homens que estupravam e engravidavam meninas da própria família não eram presos, mas só recebeu respostas evasivas: "é muito complexo", "não basta só prender", "são anos de desconhecimento".

Pouco depois, quando estagiava no Centro de Referência da Mulher, em Porto Velho (RO), se deparou com uma menina de 13 anos grávida do pai. "Quando a psicóloga explicou o que era uma relação sexual, a garota disse que a atitude do pai era apenas carinho e que se ela estava grávida, a culpa era do boto. Ali eu tive a resposta para a pergunta feita anos antes. Há um pacto de silêncio. Ninguém denuncia ou consegue provar", afirma.

O tema tinha um impacto maior em Anne porque, de certa forma, aquela era também a história dela. A psicóloga foi abusada sexualmente por um parente quando tinha só 5 anos. Assim como os casos que ela ouve, seu agressor nunca foi punido, tampouco a família fez alguma coisa.

Da vivência dolorosa e do conhecimento que adquiriu, surgiu a força para criar a Filhas do Boto Nunca Mais em 2016. Para isso, a psicóloga reuniu um grupo de 52 voluntárias de diversas áreas, como psicologia e serviço social, para realizar palestras e oficinas sobre educação sexual e violência doméstica em comunidades, sobretudo as ribeirinhas.

Além disso, a associação trabalha em parceria com órgãos públicos. "Protestar é importante, mas nosso foco é principalmente a construção de políticas públicas", explica. Em 2020, Anne conseguiu uma sala para atendimento humanizado de vítimas que chegam ao Departamento de Flagrantes da Polícia Civil de Porto Velho.

Até agora, 127 mulheres e meninas foram recebidas no espaço. Antes, as vítimas tinham que ocupar o mesmo lugar que o agressor. A associação também recebe pedidos de ajuda pelas redes sociais e já conseguiu acionar a Patrulha Maria da Penha, específica para casos de violência doméstica, para socorrer mulheres em situações de risco.

Além das ações específicas para a violência doméstica, a ong atua para melhorar a autonomia financeira das mulheres da região. Durante a pandemia, por exemplo, distribuiu cestas básicas e montou um núcleo para auxiliar mulheres artesãs a venderem seus produtos numa loja virtual. Chamado de Manas Unidas, o núcleo atende cerca de 280 mulheres, que atualmente se revezam também numa feira presencial que acontece mensalmente.

Em uma outra ação realizada no ano passado, a Filhas do Boto Nunca Mais conseguiu a aprovação de uma lei municipal que garante absorventes para mulheres de baixa renda e da rede pública de ensino. A associação mantém também um núcleo étnico-racial chamado Mãe Esperança, cujo objetivo é trabalhar a autoestima e a empregabilidade de mulheres e meninas negras e diminuir a dependência dos maridos.

Além das atividades da ONG - hoje Anne cuida da parte de projetos e comunicação - ela trabalha para levar o tema da violência a esferas institucionalizadas. Atualmente, é presidente do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente de Rondônia. "Crianças e adolescentes são vistos como miniadultos que fazem o que querem e precisam ser responsabilizados, quando, na verdade, deveriam ser protegidos", diz.

"Uma organização como as Filhas do Boto Nunca Mais, que atua integrada ao serviço público, provoca o aperfeiçoamento do todo, oferecendo um apoio que, muitas vezes, o estado não consegue", diz Tânia Garcia Santiago, promotora de Justiça, coordenadora do Grupo de Atuação Especial para Infância, Juventude e Educação do Ministério Público de Rondônia. A promotora, que trabalhava na área de violência da mulher quando as Filhas do Boto surgiram, destaca a parceria da ong com a Polícia Civil para a montagem da sala de atendimento humanizado na central de flagrantes. "Foi uma mudança de paradigma que trouxe uma resposta rápida e que é fundamental para o fortalecimento do combate à violência. Ou seja, a ong contribui para fazer mudanças estruturais no contexto da violência contra a mulher". E ela ainda destaca o papel de mobilização. "As mulheres que formam a ong, em especial, a Anne, que têm um papel de liderança importante, conseguem trazer garotas jovens, idealistas, e canalizar essa vontade que elas têm de realizar transformações. Elas têm alcance em campanhas de mobilização e quando falamos em mudanças estruturais, sabemos o quanto informação é relevante, o quanto ocupar espaços é fundamental. Elas conseguem fazer isso".

"Não me formei só para mim"

Anne nasceu em Brasília, mas aos 4 foi com a família para Porto Velho. Era quando a mãe, diarista, saía para trabalhar que um familiar abusava sexualmente dela. "Eu me tornei uma criança introspectiva e que chorava muito. Quando contei para minha mãe, ela disse para eu calar a boca e orar. Eu me senti rejeitada", conta Anne. Só anos mais tarde ela descobriria que a mãe também havia sido violentada pelo mesmo homem. "Como ela ia denunciar? Quem acreditaria numa empregada doméstica semianalfabeta?", pergunta.

Até os 14 anos, Anne morou com uma tia, que a estimulou a não parar de estudar. Depois, fez vários tipos de trabalho, como garçonete e babá, e morou de favor na casa de amigos, mas conseguiu continuar os estudos e entrar para a faculdade de psicologia. Aos 18 anos, o pastor da igreja evangélica que ela frequentava a convenceu de que precisava se casar. Oito meses depois do casamento, o marido tentou impedi-la de continuar a faculdade e a agrediu. "Precisei pedir medida protetiva contra ele e também contra o pastor, que o incentivava a ir atrás de mim", afirma.

Mesmo com essas dificuldades, Anne conseguiu se formar. Com a terapia, saiu também da depressão em que vivia. Hoje ela afirma com orgulho: "Eu não me formei só para mim. Existia um propósito maior".

Sobre o Prêmio Inspiradoras

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon.

Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, é só consultar o Regulamento.

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. O foco está nas seguintes causas: enfrentamento às violências contra mulheres e meninas e ao câncer de mama, incentivo ao avanço científico e à promoção da equidade de gênero, do empoderamento econômico e da cidadania feminina.