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Há um mês, meu marido saiu de casa para combater o vírus em UTIs

Como são os encontros entre Fernando e o filho Chico - Arquivo Pessoal
Como são os encontros entre Fernando e o filho Chico Imagem: Arquivo Pessoal

Marina Cassoli

Colaboração para Universa

20/04/2020 04h00Atualizada em 20/04/2020 12h57

O medo da pandemia chegou mesmo para mim quando Fernando, meu marido, me disse: "Acho melhor que a partir de hoje Chico durma com você e eu me isole no quarto dele". Fernando não é chegado a dramas, então confesso que dei uma congelada e senti a pandemia se aproximando de nós.

Fernando é fisioterapeuta intensivista e trabalha diretamente com doentes graves, que precisam de ventilação mecânica para sobreviverem. Ou seja, ele está no coração da doença nas UTIs. Sua rotina de trabalho se divide em dois hospitais, um municipal e outro estadual, e está na linha de frente dos profissionais que manterão contato e serão fundamentais para lidar com o combate ao novo coronavírus.

Na noite do dia 21 de março, com ele já dormindo no quarto do Chico, nosso filho, não pude dormir. Eu passei a noite literalmente em claro, pensando em como seria difícil manter a família "dividida" de baixo do mesmo teto.

Como faríamos para explicar para Chico, que tem 7 anos, que ele não poderia mais ficar com o pai, e além disso, controlar os impulsos e demonstrações de afeto, como abraços e brincadeiras corporais, tão incorporados ao dia a dia dos dois?

Chico conversa com o pai a distância - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Chico conversa com o pai, Fernando, a distância
Imagem: Arquivo Pessoal
Nesta mesma noite, um pouco antes, uma amiga que é medica e, como eu, também tem o marido trabalhando em hospital, me ligou contando a solução que tinha encontrado. O marido dela iria se mudar por um tempo para o apartamento dos pais dela, que viriam durante este tempo morar com ela, para se isolar da família enquanto a situação de pandemia não estivesse controlada.

Pronto! Pensei, vou atrás de um hotel ou locação para que Fernando passe este período em isolamento. Mas a solução era financeiramente inviável, já não tínhamos a previsão do tempo que isso duraria. Nesse momento, tive raiva. Porque a maioria desses profissionais não tem a menor condição de fazer um isolamento — deveríamos ter um apoio do governo para isso. Apoio estrutural, emocional e financeiro.

Na manhã seguinte, o marido da minha amiga convidou Fernando para dividir o isolamento no apartamento dos pais dela, uma vez que ambos estavam na mesma situação: com chances significativas de contrair, uma hora ou outra, a Covid-19.

No dia seguinte, ele fez as malas e foi para o apartamento. Minha sensação é de que ele estava saindo para uma guerra. Pode parecer dramático, piegas, mas minha insegurança e medo de não ter ele de volta aqui tão cedo e deixá-lo tão exposto a uma doença nova, fisicamente e psicologicamente mais vulnerável, foi muito violento para mim.

Pensava no Francisco e no que diria a ele se as coisas não dessem tão certo assim.

Comecei aquela semana estranhamente mais leve. A preocupação e paranoia de "dividir" espaços da casa e desinfetar as coisas de maneira mais sistemática por causa do Fernando estava sendo extremamente extenuante para mim.

Eu conseguia dar conta da rotina de casa com a execução de tarefas divididas em planilhas diárias entre: ensino a distância que a escola do Francisco demandava, cozinhar, limpar a casa, cuidar dos cachorros e, talvez, ter algum tempo para estudar ou ler alguma coisa.

Depois de dois dias morando fora de casa, Fernando veio fazer "uma visita a distância" em sua própria casa. Que loucura! Foi legal revê-lo, mas também foi muito ruim, muito estranho. Chico foi correndo, achando que poderia abraçar o pai — diante da negativa, se emburrou, chorou, se revoltou. Foi bem difícil lidar com isso, para nós três.

Cinco dias depois, eu já não conseguia acordar tão cedo e não tinha muita vontade de manter toda a rotina. Concentração zero, sem trabalho e com tudo virado de cabeça para baixo.

Fernando conversa com Chico - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O cotidiano de pai e filho tem sido assim: várias conversas ao dia pelo celular
Imagem: Arquivo Pessoal
Fernando e Chico no telefone - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Tantas mudanças em tão pouco tempo afetam demais todos nós. Mas para uma criança de 7 anos até então cheia de liberdade, ter a rotina revirada de uma hora para outra passou a ser um desafio para mim. Conversar e aceitar os momentos de altos e baixos sem querer ser perfeita foi o que nos salvou.

Os encontros com Fernando por vídeo são diários e várias vezes ao dia. Aos poucos, Chico foi entendendo que seria preciso durante um tempo ser assim. Depois de muitas perguntas — que incluía por que meu pai não pode parar de trabalhar? —, de falas cheias de indignação sobre não ser justa aquela condição, ele entendeu que seu pai é alguém que pode ajudar uma pessoa a voltar a respirar e que seu trabalho faz muita diferença neste momento que vivemos.

Tive dias de revolta também, de chorar, me isolar (mais ainda), mas foi bom. Sinto que estamos construindo algo muito mais sólido em torno do amor.

Marina Cassoli e família - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal
No dia 1º de abril, Fernando começou a ter sintomas de Covid-19: febre, mal-estar, dor de cabeça, além da perda de olfato e paladar. Conseguiu a duras penas fazer um exame em uma UBS (Unidade Básica de Saúde, em São Paulo) depois de tentar muito em hospitais particulares do convênio que temos, bem como nos hospitais onde ele trabalha.

De novo me senti insegura, revoltada e com medo. Aquele medo que todos temos, de perder alguém. Estatisticamente e racionalmente sem sentido, mas como dizer isso para o cérebro em meio a um turbilhão de sentimentos? Ele foi melhorando, e passou a nos visitar a distância e de máscara.

Na Páscoa, trouxe um ovo para o Chico e, para mim, meus chocolates preferidos. Não pudemos almoçar juntos, mas tudo bem.

Fernando está afastado do trabalho desde o dia 4, por causa dos sintomas. Até hoje não recebeu o resultado do teste que fez. Na última sexta-feira, 17, decidiu pagar por outro tipo de exame de sangue, que pode confirmar se seu organismo já teve contato com o vírus. Ironicamente estamos torcendo para dar positivo, para que finalmente ele possa voltar para casa.

Por trás de cada profissional de saúde há uma história de dedicação que a gente não consegue enxergar. Falta de material de trabalho, sentimentos, medos e insegurança. O que eles precisam é de respeito.

No fundo, temos sorte. Ele pode se isolar em um apartamento confortável, onde recebe jantares deliciosos de uma cozinheira generosa, e de perceber que há amor de uma rede gigante de solidariedade, força e esperança, dos amigos, do grupo da escola e claro, das nossas famílias.

Eu tenho muito orgulho dele. O que vai mudar? Tudo. O que aprenderemos com isso? Aprendemos mais sobre o amor, sobre a solidariedade e também que toda vida vale.