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Por que uma mulher espalha cartazes sobre feminicídio pelos muros de Paris

"Às mulheres assassinadas, a pátria", diz faixa estendida em frente ao Louvre em protesto contra os feminicídios na França - Reprodução/Instagram
"Às mulheres assassinadas, a pátria", diz faixa estendida em frente ao Louvre em protesto contra os feminicídios na França Imagem: Reprodução/Instagram

Cristiane Capuchinho

Colaboração para Universa, de Paris

04/04/2020 04h00

"Monique, morta a tiros por seu marido". "Gaëlle, grávida, esfaqueada pelo seu ex". "Maureen, 28, espancada até a morte pelo namorado". Espalhados pelos muros de Paris, os cartazes denunciam feminicídios e rompem o silêncio em torno do problema. Na origem dessa campanha está Marguerite Stern, uma ativista de 29 anos com passagem pelo coletivo Femen decidida a ampliar o espaço ocupado pelas mulheres na sociedade.

A partir de Paris, as folhas A4 escritas com grandes letras em preto denunciando o feminicídio passaram a ser reproduzidas por toda a França, e em outros países, como Espanha, Portugal, Itália, Polônia, Bélgica e Reino Unido.

O movimento cresceu e se adaptou a cada cenário. Em tempos de confinamento contra o coronavírus, janelas e redes sociais passaram a ser os novos muros. Dessa vez, além de denunciar a violência doméstica, o objetivo é também divulgar o número de emergência para quem está dentro de casa com seu agressor.

A ideia nasceu de maneira despretensiosa. Marguerite morava em Marselha, no sul do país, e sofria com o assédio sexual. Sob a influência de uma amiga que colava lambe-lambes pelas ruas, adotou a estratégia para se expressar. A primeira frase colada por Marguerite foi: "Desde os meus 13 anos, os homens fazem comentários sobre o meu corpo na rua". Sob o risco de ser pega pela polícia, ela decidiu que era preciso ter um motivo pelo qual ela não se arrependesse.

O feminicídio era essa razão. "Se eu tomar uma multa porque colei o nome de uma mulher morta por seu parceiro, não me importo." Ela se mudou para Paris em agosto de 2019 e fez uma chamada nas redes sociais convocando mulheres que quisessem também usar os muros da cidade para se manifestar.

5 de janeiro de 2020 uma mulher foi queimada viva pelo seu namorado, diz a pintura em Paris - Reprodução/Twitter Margueritte Stern - Reprodução/Twitter Margueritte Stern
05.01.2020: Uma mulher foi queimada viva pelo seu namorado, diz a pintura em Paris
Imagem: Reprodução/Twitter Margueritte Stern

No primeiro mês, ao menos 200 voluntárias passaram pelo quartel-general da campanha, uma ocupação em um bairro residencial e universitário da capital francesa. Com a experiência acumulada em três anos no coletivo Femen, Marguerite incitou o exército de mulheres à ocupação do espaço público com mensagens diretas e impactantes.

"Espera-se das mulheres que elas sejam frágeis, discretas, que não ocupem muito espaço, que não falem alto demais. Os nossos cartazes são grandes, são uma forma de mostrar, em imagens, que as mulheres não são mais silenciosas, saímos às ruas para tomar o nosso lugar", explica a ativista em entrevista a Universa. Seguindo a cartilha Femen, eram necessárias ações que chamassem a atenção dos pedestres, mas também da imprensa.

Em setembro, a famosa pirâmide do Louvre, museu mais visitado do mundo, foi suporte para uma colagem em homenagem a Monique, uma das mais de cem vítimas do feminicídio a cada ano na França. Com a visibilidade, o movimento se espalhou e resultou na multiplicação de núcleos independentes.

Nas redes sociais, a busca por Collages Feminicides (Colagens feminicidas, em português) mostra a reprodução da estratégia por toda a França e em diferentes países.

Encarar a realidade

"Papai matou mamãe." "Ela o abandona, ele a mata." "Mais ouvidas mortas do que vivas." Os cartazes chamam a atenção para as vítimas, evitam toda tentativa de amenizar o horror do crime, e denúncia o silêncio em torno da questão. "Frequentemente a imprensa e a sociedade não usam os termos certos para falar do feminicídio. Em vez de falar em assassinato, chamam de drama familiar, de crime passional. É muito importante descrever, dizer exatamente o que isso é, é feminicídio, é um massacre", afirma Marguerite.

"A população precisa encarar a realidade. Tem mulheres que foram degoladas, queimadas vivas, mulheres que foram jogadas da janela, mulheres mortas diante de seus filhos, mulheres atropeladas por seus maridos. O feminicídio não são apenas números, são pessoas", conclui.

O feminicídio é o desfecho trágico de uma história de violência, que muitas vezes não foi ouvida há tempo. Na França, país com 60 milhões de habitantes, o governo estima que 220 mil mulheres sejam vítimas anualmente de violência física ou sexual cometidas por seus parceiros. No ano passado, ao menos 126 mulheres foram mortas.

No Brasil, o Ministério de Saúde registrou 145 mil casos de agressão a mulheres feitas por homens em 2018. Ao menos 1.310 mulheres foram mortas por violência doméstica no país em 2019. Diante desse quadro, Marguerite considera as mulheres heroínas das ruas, nome também escolhido por ela para o podcast em que conta seu combate pelo direito das mulheres.

"Somos todas heroínas. Não nascemos assim, mas o sistema patriarcal nos obrigou a isso, ao nos impor os piores horrores. Em níveis diferentes, todas as mulheres já sofreram discriminação por ser mulher. E mesmo assim continuamos a lutar, a ir para as ruas, onde sofremos assédio e agressões o tempo todo. E, ainda assim, nós resistimos."

Apoio em tempos de confinamento

Com um terço da população mundial isolada em suas casas por conta da pandemia do coronavírus, a luta contra a violência doméstica tomou contornos de urgência. A campanha francesa contra o feminicídio continua pelas janelas e nas redes sociais. Muitas mensagens agora mostram apoio às mulheres que sofrem com a violência doméstica, e divulgam o número de emergência para denúncia de agressões.

Neste momento, Marguerite recomenda que as mulheres mantenham-se em contato com as pessoas mais vulneráveis para evitar o isolamento das vítimas. "É preciso dizer para elas que estamos aqui para ouvir e para apoiar. Dizer que a culpa não é delas. E que se elas se sentem em situação de risco, devem denunciar e têm o direito de fugir."

O isolamento nacional começou na França em 17 de março. Na primeira semana, houve um aumento de um terço no número de casos de violência doméstica registrado na polícia.

No Brasil, ainda não há um balanço nacional da situação. No entanto, apenas no Rio de Janeiro, o plantão da Justiça teve uma ampliação de 50% nas denúncias de agressão contra a mulher desde o início da quarentena pelo coronavírus.

O número de emergência brasileiro para denúncias é o 180, e funciona 24 horas. A ligação é gratuita e anônima.