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"Revejo o abusador na ceia": quando o Natal é o pior pesadelo da mulher

Angústia, repulsa e revolta: o que elas sentem no Natal - iStock
Angústia, repulsa e revolta: o que elas sentem no Natal Imagem: iStock

Ana Bardella

De Universa

23/12/2019 04h00

Na véspera do Natal de 2012, Adriana Mattioli, que na época tinha 22 anos, juntou-se à família para a ceia, mas quase não conseguiu acompanhar a conversa, se divertir ou comer: ela estava sentada diante do seu pai, o homem que havia abusado sexualmente dela na infância e com o qual preferia não ter nenhum tipo de contato.

Até aquele momento, eles pouco se encontravam. Mas com o falecimento do avô, dois meses antes, ela não teve coragem de faltar às comemorações, pois sabia que isso causaria sofrimento à avó. A experiência foi terrível: "Tentei evitar o contato o máximo que pude, mas não conseguia ignorá-lo, pois estávamos muito próximos. A comida não descia pela minha garganta. Passei mal depois", conta.

Nem o primeiro, nem o último Natal

Adriana não se lembra de quando os abusos começaram, mas tem memória de algumas situações traumáticas vividas na primeira infância. "Quando tinha 4 anos e meio minha mãe descobriu sobre os crimes e pediu a separação, mas não chegou a denunciá-lo formalmente. Na época, o juiz determinou que eu só poderia visitar ou dormir na casa dos meus avós paternos quando ele não estivesse lá", explica. A mãe de Adriana também expôs o problema à família do ex-marido.

Com a restrição judicial, ela passou alguns anos sem ver o pai, mas enfrentando resistência por parte da avó paterna. "Ela tem uma postura superprotetora com o filho, não consegue reconhecer os erros dele", explica.

A situação mudou na adolescência: os avós organizaram uma festa para comemorar as bodas de ouro e ela se viu em um beco sem saída: não poderia fazê-los escolher entre a presença do filho ou da neta. "Acabamos na mesma mesa, a situação foi muito desagradável. Pensei que havia acabado, mas depois disso minha avó se sentiu a vontade para chamá-lo sempre para as datas comemorativas, principalmente o Natal. Ele aparecia de surpresa, ficava um clima ruim na casa", conta.

Até o falecimento do avô, os encontros eram mais rápidos e não tão frequentes, pois ele não gostava de ver o filho perto da neta. "Depois que ele se foi, a presença do meu pai era certa nestes eventos. Ele posava de bonzinho e eu sempre com aquele sentimento ruim. Começava a ter crises de ansiedade pelo menos duas semanas antes do Natal, mas queria ver minha tia, meus parentes", relembra. Os momentos de tensão só acabaram para Adriana quando o pai faleceu. "Ele bebia, fumava. Teve complicações e morreu cedo, aos 57 anos".

Ressignificação

Hoje, aos 29 anos e trabalhando como professora, está casada e, pela primeira vez, vai comemorar o Natal na sua própria casa, com as duas famílias: a materna e a paterna. "Estou ansiosa para saber como será a nova dinâmica. O Natal está voltando a ser para mim o que deveria ter sido desde o início: uma data para me reunir com as pessoas que amo", diz.

Problema frequente

No Brasil, mais metade das vítimas de estupro tem até 13 anos — e a maior parte dos crimes é cometido por pessoas de convívio próximo, tais como parentes ou amigos da família. Nem todos são expostos, como foi o caso de Adriana. "Há casos em que os pais ou responsáveis não reconhecem os abusos e a vítima cresce sem dizer nada. Em outros, os familiares preferem colocar panos quentes na situação a fim de evitar represálias contra o abusador, além de rompimentos nos laços, o que é um grande erro", explica a psicanalista Andrea Ladislau.

Graças a isso, muitas das vítimas, principalmente mulheres, acabam revendo seus abusadores em datas comemorativas. É o caso de uma paciente de Andrea: "Ela nunca expôs os abusos que foram cometidos por parte de um amigo da família que está presente em todos os eventos. Por causa disso, tem episódios depressivos e crises de pânico antes das reuniões. Em casos assim, quem já foi vítima pode se retrair, sentir dores pelo corpo, inventar desculpas para ir embora mais cedo e até faltar nos eventos por conta dos traumas", detalha.

Pelos relatos que a profissional escuta nos consultórios, os principais sentimentos são de medo, nojo e revolta. "Algumas se sentem psicologicamente frágeis, ficam amedrontadas. Outras sentem raiva ao verem o abusador ser tratado bem pelos demais membros da família. Muitos deles têm um perfil amável, solícito, justamente para esconder o que fizeram no passado. Já com a vítima, tentam criar um clima de cumplicidade, como se ela tivesse culpa do que aconteceu", aponta Andrea.

Independentemente da situação, ficar frente a frente com o abusador não é fácil. "O mais aconselhado para as vítimas é que procurem apoio psicológico. Assim, podem analisar com mais clareza a situação, trabalhar os sentimentos ruins que os episódios despertam e até repensar se devem ir a estes eventos ou expor o que aconteceu aos demais. São questões individuais. Mas em todos os casos, o tratamento traz alívio para as dores emocionais", recomenda.