Cris Guterres

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Opinião

Além de incentivadas a cuidar, somos treinadas para evitar o desagrado

Recentemente, fui importunada de maneira agressiva e insistente por um conhecido numa balada. Cercada por abraços excessivos e tentativas de beijo-surpresa, me senti acuada. Fui para casa frustrada e decidida a confrontá-lo no dia seguinte, pois aquele não era o primeiro episódio, outras tentativas existiram no passado e em todas eu recusei.

Ele foi mais rápido e me enviou uma mensagem pedindo desculpas por ter bebido demais e sido inconveniente. Quando mencionei a importunação sexual, ele disse não lembrar nada da noite anterior e pediu, praticamente aos prantos, que eu contasse o que havia acontecido. Em poucos minutos, ele me envolveu em uma lamúria, e rapidamente me vi consolando meu importunador. Eu disse que ele tinha tentado me beijar, mas sem violência, que havia sido inconveniente, mas que eu entendia que ele era do bem.

Como isso é possível? Eu, uma pessoa esclarecida sobre a violência contra a mulher, consolando alguém que me constrangeu e me importunou a noite toda. Mas o que faz uma mulher, mesmo com conhecimento, ainda cair em situações de defender aquele que a desrespeitou?

Desde a infância, meninas são cercadas por mensagens que reforçam a importância de cuidar dos outros. Recebem brinquedos como bonecas e utensílios de cozinha em miniatura que incentivam o desenvolvimento de habilidades de cuidado. Ouvem histórias e contos de fadas que glorificam personagens femininas que se sacrificam pelo bem-estar dos outros.

Na família, as expectativas também são evidentes. As meninas são frequentemente incumbidas de ajudar nas tarefas domésticas e cuidar dos irmãos mais novos, enquanto os meninos têm mais liberdade para explorar atividades externas. Esse padrão ensina às meninas que suas necessidades e desejos são secundários em relação aos dos outros, e eu fui uma menina que vivenciou todas estas situações.

Além de sermos incentivadas a cuidar, somos treinadas para evitar o desagrado. Somos ensinadas a ser gentis e educadas. Expressões de raiva ou frustração são desencorajadas, e comportamentos assertivos são frequentemente vistos como inadequados.

Frases como "seja boazinha", "não faça barulho" e "comporte-se como uma dama" são comuns no dia a dia das meninas. Essas instruções as ensinam a ser submissas e complacentes. O resultado é uma pressão constante para manter a harmonia e evitar sermos vistas como más ou desagradáveis, exatamente o que eu estava tentando fazer com alguém que havia me desrespeitado.

Na escola, meninas que mostram liderança ou assertividade muitas vezes são rotuladas como "mandonas" ou "difíceis", enquanto os meninos com comportamentos semelhantes são encorajados e admirados por suas qualidades de liderança.

Essa diferença na forma como comportamentos são interpretados e corrigidos contribui para a internalização de que ser assertiva é indesejável para uma menina e isso reverbera na vida adulta. No ambiente de trabalho, mulheres que defendem suas opiniões podem ser vistas como problemáticas ou difíceis de lidar, o que pode prejudicar suas carreiras.

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Um estudo realizado em 2015 pela Universidade de Harvard e conduzido pelos pesquisadores Iris Bohnet, Alexandra van Geen e Max Bazerman, revelou que mulheres que exibem comportamentos assertivos no local de trabalho são frequentemente penalizadas em avaliações de desempenho e menos propensas a receber promoções em comparação com homens que exibem os mesmos comportamentos.

O constante esforço para agradar e a incapacidade de estabelecer limites podem nos levar ao estresse crônico, ansiedade e depressão. Mudar essa dinâmica exige um trabalho consciente para educar meninas e mulheres de maneira diferente das que estamos acostumados a observar. É crucial encorajar a assertividade e ensinar que dizer "não" é um direito fundamental e não algo que deva ser evitado.

Mesmo eu já tendo dito um 'não' ao meu importunador, eu me vi amenizando a dor que ele demonstrou sentir quando eu disse que ele havia me machucado com o seu comportamento.

Eu estava tentando ser agradável, respondendo a um condicionamento social profundamente enraizado. Cheguei a minimizar a gravidade do ato e tentei acalmá-lo, como uma forma de autoproteção. E em casos de abuso, mulheres costumam agir assim também numa tentativa de evitar uma escalada da violência.

Pouco depois de trocar algumas mensagens com ele, conversei com uma amiga que havia assistido à cena e que me reforçou que ele havia cometido atos caracterizados como importunação sexual. Virei a chave rapidamente e me senti uma idiota, mas ainda em tempo de gravar uma mensagem reforçando o que ele havia feito, sendo assertiva, estabelecendo limites e caracterizando o que ele fez com todas as letras, reforçando o sentimento de humilhação e desrespeito que eu senti.

Eu me senti leve por não estar mais desejando ser agradável, me senti leve por ter dito tudo o que eu queria ter dito já há muito tempo para muitos outros homens que me feriram. A fala não apaga a dor de quem foi desrespeitada, mas restaura o conhecimento e o limite que precisamos impor para nossa própria dignidade e bem-estar. "Não" é uma frase completa e suficiente em qualquer diálogo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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