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Opinião

'Hétero top' falou em Império Romano? Isso diz muito sobre desejo político

Uma destas coisas estranhas que aparecem na internet, desaparecendo depois de forma tão enigmática como surgiu, é a ideia de que homens brancos hétero tops pensam constantemente no Império Romano. O fenômeno vira meme, viraliza, todo mundo acha curioso e depois desaparece, como muitas celebridades e subcelebridades digitais e culturais.

Freud se interessou indiretamente por este problema ao estudar o processo social do chiste, ou seja, como somos levados a passar adiante uma mensagem, como uma piada, de forma irresistível, mesmo que ela seja mentirosa, preconceituosa ou danosa, simplesmente porque ela representa uma estratégia de recuperação de uma satisfação inconsciente, ou seja, uma forma de dizer uma verdade que nossas regras sociais tendem a reprimir.

Freud indicava três características importantes para que uma piada "funcione".

  • Ela deve conter um elemento de surpresa;
  • Apresentar uma falta de sentido aparente, por exemplo, sofisma, paradoxo ou contradição e;
  • Estabelecer um grupo de referência que "entende a piada".

Catão era um senador romano que seguia estes três preceitos de forma muito peculiar. Ele sempre concluía seus discursos, independente do conteúdo ou da ocasião em que eram realizados, repetindo esta mesma expressão: Cartago tem que ser destruída (Delenda est Cartago).

O contexto são as guerras púnicas, entre o Império Romano, em expansão, por volta do século II a.C., e a colônia fenícia no norte da África, na região hoje conhecida como Tunísia. Depois de ser derrotada duas vezes os cartagineses, liderados por Aníbal e conduzindo elefantes entre os Alpes, chegaram às portas de Roma. Curiosamente eles não atacaram.

Este acontecimento aparentemente inexplicável costuma ser contrastado com o ato de Júlio César, ao cruzar o rio Rubicão com seus exércitos, contrariando uma lei romana explícita a este respeito. Júlio César teria dito: Alea jacta est ("A sorte está lançada"), como uma espécie de declaração de fundação do Império Romano. Um Império que, assim como o chiste, teria se originado na transgressão de uma lei.

O contraste é ainda mais perfeito quando seguimos a hipótese de que Aníbal não atacou Roma porque ele confiou em uma lei "tácita", praticada pela guerra na Antiguidade, de que quando existe uma inferioridade cabal das defesas locais, o mais forte deve esperar o mais fraco pedir rendição, pelo menos três vezes.

Quem assistiu a "Indiana Jones e a Relíquia do Destino" (2023), poderá ver o encontro notável entre Harrison Ford e Arquimedes durante a batalha de Siracusa (213-211 a.C.). Esta colônia cartaginesa na Sicília teria resistido a três anos de cerco graças aos instrumentos inventados por Arquimedes.

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Diz a lenda que o general romano Marcelo ordenou que o grande pensador grego fosse poupado. Mas quando o romano entrou na sua casa do filósofo grego, este teria dito: "Não atrapalhe meus cálculos!" A insolência lhe custou a vida. Ou seja, de uma forma ou de outra os romanos não seguiram a regra moral do respeito à rendição dos mais fracos.

Estive recentemente visitando a Tunísia, onde localizava-se a antiga Cartago, cujas ruínas pude visitar, bem ao lado das ruínas romanas. Percebe-se assim que os cartagineses eram eles mesmos um outro império. Uma colônia fenícia no norte da África, que empurrou os berberes locais para o deserto. Daí a derivação do termo grego bárbaro, como "aquele que não fala nossa língua e balbucia como uma criança", para o árabe berbere.

Dar voz aos vencidos é recuperar as ruínas, pois isso é o que já era feito pelo próprio processo colonizador. Por exemplo, junto ao pórtico do Capitólio de Dougga, na Tunísia, existe o Fórum onde as disputas legais, políticas e filosóficas eram resolvidas pela palavra.

Faço parte de uma escola de psicanálise que presta homenagem a este dispositivo do Fórum. Seríamos parte então do imaginário imperial e seu expansionismo colonizador? Ou defendemos o principio de que palavra e a cidadania plena deve ser dada ao outro, em vez da escravização, em vez do colapso estrutural do império em expansão?

Ainda que os templos de Júpiter, Minerva e Juno testemunhassem as disputas em frente ao Fórum, ainda que estas presumissem uma língua comum, ainda que a cidadania fosse para poucos, ainda assim é a força da palavra, meio fundamental pelo qual fazemos o outro existir, quer porque representamos sua força ou fraqueza, destruímos sua história ou lembramos suas ruínas, acolhemos seus deuses ou demonizamos nossos inimigos. Contra a "des-existência" do outro que está em questão.

Aliás, bárbaros, como godos e vândalos, habitantes das fronteiras do norte, assim como os berberes do sul, invadiram as províncias romanas. Tudo isso aconteceu antes dos bizantinos se dividirem.

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Antes dos venezianos se interessarem por este ponto estratégico do Mediterrâneo.

Antes dos otomanos assumirem o controle de Cartago em meio à expansão do islã que formaria a forma simbólica da lua crescente, que vai de Córdoba, na Espanha, até Istambul.

Antes dos franceses dividirem o norte da África com os Italianos.

Antes dos alemães tomarem portos estratégicos da Tunísia na Segunda Guerra Mundial.

Antes mesmo dos americanos instalarem sua cabeça de ponte no Oriente Médio.

Antes de Stalin ter sido o primeiro líder mundial a reconhecer o tal território.

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O povo tunisiano apoia amplamente a resistência palestina em Gaza. Há bandeiras e solidariedade por toda parte. Ao mesmo tempo transpira o sabor amargo pelo atual fechamento democrático do país.

Visitei Sidi Bouzid, a cidade ao sul de Túnis, onde Mohamed Bouazizi, um verdureiro, teve seu carrinho virado por policiais, impedindo-o assim de trabalhar. Em protesto ele senta-se em frente a prefeitura e ateia fogo a si mesmo. A cena foi filmada e correu a região dando origem a Primavera Árabe.

Hoje, ali existe uma estátua homenageando o vendedor. Em frente ao monumento fica o Museu da Revolução, atualmente fechado para reforma. Depois da Primavera emergiram 240 partidos diferentes. Neste cenário caótico, radicais moralistas e religiosos tradicionalistas assumiram a confiança da população.

Aqui, como em outros lugares, percebe-se o efeito rebote, pelo qual um avanço democrático é seguido de uma reação conservadora. Mas aqui fica mais claro como a expansão democrática cria um efeito de regressão econômica neoliberal, que faz com que as pessoas sonhem com a volta do Império.

É possível que nossa fascinação contemporânea com o Império Romano seja herdeira dos tempos da Guerra Fria, dos tempos da Guerra ao Terror agora reforçada em escala digital pela ideia de que o "inimigo deve ser destruído".

Teríamos assim três políticas de colonização de nosso desejo político:

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  • A nonsense de Catão baseada na ideia de que o inimigo simplesmente deve deixar de existir;
  • A opção pela conversão, pela qual os "pacíficos" serão incorporados ao Império, tornando-se gradualmente cidadãos, ao passo que os insubmissos serão escravizados a força e;
  • A rendição ritual, aparentemente seguida por Aníbal, pela qual, o sangue pode ser substituído pela palavra, desde que ela seja livre e indeterminada.

Primeira fantasia política

A primeira fantasia política reflete nosso desejo imaginário de retornar a um tempo onde havia uma ordem no mundo. Grandes dirigentes, moralmente superiores, estavam no comando e a hierarquia reinava feliz. Estátuas equestres de generais guerreiros, geralmente calvos, celebravam a expansão do Império. A cultura dos heróis, seus feitos, seus superpoderes e suas incríveis habilidades excepcionais sugere que nosso destino está nas mãos benevolentes ou gananciosas destes 1%.

A salvação só pode depender destes heróis superpoderosos, sejam eles donos de companhias digitais, sejam eles empresas de carros, carbonos ou glicofosfato. A distribuição forçada do poder, a limitação da concentração de recursos, seja pela violência seja pela "consciência", tudo isso terminará bem enquanto tivermos Cartago para destruir.

Segunda fantasia política

A segunda fantasia política observa que Roma é também uma civilização onde projetamos o nosso universo de corrupção generalizada. Bacanais como os descritos por Petrônio em Satiricon. Filósofos estoicos como Sêneca, ensinando a recuar a alma para dentro dos corpos. Revoltas de escravos, como a que Spartacus liderou. Vemos um colapso, econômico e ambiental à nossa frente. Como interpretamos que nada podemos fazer contra a estrutura, recuamos para o gozo máximo de cada um, por cada um.

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Assim como os romanos, imaginamos que a saída é superdesenvolver economicamente o mundo. Assim como os Impérios que nos antecederam acreditamos no casamento improvável entre a austeridade, como valor moral aplicado a economia e na democracia, como valor econômico aplicado à moral. Incorporamos assim a crise climática e a sustentabilidade, como um problema local, individual e como algo insolúvel, a não ser pela regressão para a fantasia número 1.

Terceira fantasia política

A terceira fantasia é aquela que alimenta nossa oniropolítica, ou seja, uma política que não se contente apenas com o necessário, nem com o possível, mas que se fundamente no impossível e na contingência. Neste caso, o sentimento de que caminhamos para um colapso não é mitigado, barganhado contra a escravidão, nem negociado por meio de fantasias narcísicas de que os outros serão eliminados, mas nós sobreviveremos. Quando todos morrem não há Inimigos, internos ou externos.

Aqui a resposta não reside no retorno regressivo às ruínas bárbaras, romanas, bizantinas, venezianas, europeias ou qualquer outro mecanismo ventríloquo das vozes originária que virão nos salvar, simplesmente porque as citamos para espantar deuses alheios. Mas ela depende de uma palavra que é imune a potência da violência e da guerra, como motor até aqui da história, dos vencedores e dos vencidos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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