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Opinião

'Mal de selfie': quando nossas fotos revelam que temos um sério problema

Uma boa piada é tão contagiosa quanto o pior bocejo. Ela desencadeia o impulso de proliferar o prazer que se experimentou. Segundo Freud, esta não é uma tendência altruísta, ainda que nossa ação se oriente para o outro de modo a compartilhar uma boa história. Passamos uma piada adiante porque não podemos rir indefinidamente dela na solidão de nossa privacidade. Passamos a piada adiante porque, ao assistir à satisfação que ela causa no outro, capturamos de volta um fragmento de nosso próprio prazer original. É assim que funcionam os prazeres repetitivos. Eles nos fazem gozar da coisa e do fato de que a coisa é duplicada. Cria assim o milagre da multiplicação das risadas.

Seria este o caso dos policiais que prenderam o traficante em uma ação heroica e arriscada, mas, não contentes com o sucesso íntimo e pessoal, proliferam o feito, exibindo selfies massivas do aprisionamento, quando não de assassinato?

Hoje se discute uso de câmeras por policiais, como forma de controle social da violência. Nesse caso, temos o contrário do "self". Trata-se do outro, do "otherness". Com seu olhar, potencialmente presente nos faz agir moralmente.

É possível que uma parte da resistência e da adesão ao uso de câmeras dependa da confusão, quase winiccotianna, entre falsos e verdadeiros selfies. Mas é possível também que tenhamos uma segunda distinção a fazer, ou seja, entre os que tiram selfies para aprisionar um instante de celebridade e os que padecem desta síndrome, que eu acabei de inventar, chamada "mal de selfie".

Não creio que se trate da reedição da antiga prática dos caçadores que, como Ernest Hemingway, tiravam fotos com as carcaças dos animais abatidos, como prova de sua virilidade e testemunho de supremacia. Nas fotos não se encontra apenas a tradicional divisão entre derrotados e vencedores, mas uma espécie de confraternização entre os que participam de uma mesma festa. As armas não são erigidas em símbolo da vitória, como nos rituais terroristas, mas apresentadas ao modo de um detalhe da vestimenta, como que a combinar com as unhas pintadas de rosa modelo "chão de estrelas".

Andando pela Europa, constatamos, não sem uma certa vergonha, certo tipos humanos que se enfeitam para tirar fotos em um hotel de luxo, uma obra de arte ou uma destes monumentos históricos. É como se a enunciação da imagem fosse: "Eu fui e você está aí vendo que eu estive lá", "sinta inveja de mim porque você está fora da cena, por favor".

Uma selfie banal deste tipo difere de um "mal de selfie" (onde há exposição humilhante de heróis e derrotados, onde também nos sentimos, sobreviventes e vivos, fora da cena)? Nos dois casos, a viagem só se completa realmente quando contamos nossa aventura para os amigos, repetindo os detalhes da aventura.

Mas a verdadeira viagem nos torna diferentes de que éramos antes, ao passo que a selfie de lacração apenas confirma quem a gente já era antes de qualquer coisa —mesmo que os outros não soubessem disso.

Uma boa viagem não existe sem a história que criamos e as ficções que inventamos sobre o que poderia ter sido. Desejamos que nossa forma de amar e trabalhar adquira a estrutura de uma viagem. A viagem nos reinventa, voltando para o mesmo lugar, mas agora diferentes.

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As fotos de viagem são um suporte de memória para nossa narrativa. Imagens que são outras versões de lugares e pessoas, que tiramos para criar outra versão de nós mesmos, quando a viagem já tiver passado.

A selfie do poser, ao contrário, não transforma quem o produz, apenas confirma o que ele sempre foi. Por isso ela é feita para ser esquecida, ou reposta por outra selfie. Quando não houver mais selfie, também não haverá mais "self". Começa assim uma corrida que os psicanalistas chamam de reposição narcísica.

Aprisionar um bandido na era da selfie não se equipara nem com a caça de um animal, nem com uma piada sobre um personagem de quem gostamos de rir, muito menos com uma viagem ao perigoso mundo do lado de lá do asfalto. A comparação mais apropriada seria com aquele turista que, sentindo-se irrelevante diante de uma obra de arte que ele não consegue aproveitar nem entender, tira uma foto de si. Por exemplo, ao lado da Mona Lisa, como que a dizer: "não sei o que isso significa, mas aposto que outros vão saber... e me invejar".

Este é o narcisismo mais perigoso. Ele não se confunde com o egoísmo individualista por meio do qual criticamos os outros, apenas para gozarmos orgulhosamente com nossa própria imagem de humildade altruísta.

O narcisismo venenoso começa quando as fotos que tiro da viagem são mais importantes do que a viagem em si, quando o filme que faço do show substitui uma experiência envolvente e panorâmica por uma tela de um palmo, quando a imagem refletida no espelho do motel é mais importante do que a pessoa com quem compartilho a cama.

O culto da imagem não é um problema. Desde sempre, a realização do valor simbólico de uma imagem é o ponto com o qual nos identificamos, apenas e tão somente porque esta imagem é portadora do desejo do outro. Cada vez que assumo uma nova imagem, opera-se em mim um efeito de transformação. Foi assim que Jacques Lacan descreveu a origem de nosso próprio eu, como sintoma de desconhecimento e demanda de reconhecimento.

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O problema não está na imagem, mas no tipo de espetáculo que organizamos em torno dela. Não é justo dizer que aqueles que são chegados em um "pau de selfie" são ridículos alienados, enquanto nós, que nos dedicamos a exibir nossas marcas e grifes, cada vez mais exclusivas, que só nosso condomínio pode decifrar, estamos realmente fazendo outra coisa. Pau que bate em Chico bate em Caetano.

A imagem do policial, meio constrangido, meio orgulhoso, rodeado pela tropa de elite, é constrangedora porque ela não é de fato uma piada, na qual os personagens estão parodiando uma cena de filme. Ela é uma imagem que não é assumida enquanto tal, portanto uma imagem que não transforma ninguém. Ela não evoca uma história, nem faz legenda para uma aventura que merece ser contada. Ela é apenas um indício de que seus personagens estão sofrendo com o "mal de selfie", ou seja, uma mistura entre o sentimento de irrelevância e pobreza daquele que demanda ser reconhecido por um olhar impessoal de "qualquer um" e o contágio de aprovação pelo qual posso transformar um ato moralmente errado em uma gloriosa façanha do "self".

O "mal de selfie" é um espetáculo pobre, no qual a exuberância da produção tenta compensar a falta de roteiro e a direção de arte precária com a exibição de objetos cenográficos, nas quais o "selfador" se transformou.

Por isso quando você achar que está se levando a sério demais, convencendo os outros do que você mesmo não acredita mais, quando você não percebe que sua piada é de mau gosto, ou que volta das viagens com aquele sentimento de impostura 171, considere seriamente recolher seu pau de selfie e tratar do seu "mal de selfie".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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