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Opinião

Existe amor de IA? Como seu desejo vai ser testado por um ser artificial

Lacan dizia que onde quer que o ser humano chega se erige um bordel e uma prisão. Foi assim com a internet, que abalou completamente o mercado da prostituição, abrindo frentes antes impensáveis para a livre iniciativa sexual.

Mas agora a onda da inteligência artificial promete renovar a situação com a invenção de influencers, amigos coloridos e companhias de todo tipo, geridas por programas que simulam conversação humana, acoplados a imagens montadas sobre protótipos de "desejabilidade" que não apresentam risco de direito de imagem ou exposição imprópria.

Teríamos então superado o debate feminista entre as que percebem a pornografia como um capítulo da objetificação e espoliação do corpo feminino, como MacKinnon, e as que, como Despentes, entendem que as trabalhadoras sexuais devem ser incorporadas aos sistemas de proteção e segurança laboral, como qualquer outro labor, especialmente para as mulheres pobres.

Antes disso, já temos inúmeros influencers geridos por inteligência artificial, como Milla Sofia, que atende os quesitos Barbie em quase todos dos aspectos.

@millasofiafin Next to the river, dressed in white. How does this setting make you feel? This image is synthetic. #river #nature #finland #suomi #fyp #aigenerated ? original sound - Redbutterfly75? - Redbutterfly75?

Aliás, parece haver uma simetria invertida entre o filme e a nova onda de influencers artificiais. Afinal, ambos prometem um mundo onde tudo o que você pode imaginar encontra-se devidamente disponível, asceticamente alegre e saudavelmente desfrutável.

Mas no filme da Barbie há duas pequenas coisinhas que ficam de fora para que a realidade diante de seus olhos fique assim límpida e sem estranhamentos indesejáveis: sexo e desigualdade social.

As garis que limpam as latas de lixo estão igualmente no clima Barbie de afetos efusivos. Ao final e ao cabo, mesmo o Ken tem que se conformar em "descobrir a si mesmo", em vez de "passar uma noite com a loira". Combina com a contabilidade dos produtores de cinema que deliram com um novo roteiro estetizado em que a "nova Barbie" continua pagando muito bem.

Nos anos 1960 uma famosa companhia de automóveis fez um estudo minucioso, mobilizando quase tudo o que se sabia sobre psicologia do consumidor, aliás introduzido na América graças ao sobrinho de Freud, Edward Bernais.

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Pesquisa científica feita, detectados os traços elementares que o carro desejado pelos americanos deveria ter, produziu-se o objeto dos sonhos, sob encomenda.

Ponto a ponto os desejos foram atendidos, mas o carro foi um fracasso de vendas.

Moral da história: não queremos o que dizemos que queremos, mas queremos que o outro nos surpreenda com um objeto que nos surpreenda, criando um desejo novo, nunca antes perfeitamente sonhado.

Desconhecer a diferença entre desejo e demanda, é mais ou menos como tomar a prisão pelo bordel.

Uma versão mais simples do mesmo problema foi abordada pela observação de Zizek de que as modelos mais apreciadas pelo público masculino não eram as plasticamente perfeitas, como Barbies assexuadas, mas aquelas que apesar de ser muito belas apresentavam um pequeno defeito, como uma pinta, uma cicatriz ou uma dissimetria facial.

Tudo se passa como se os três princípios da estética —a beleza, a feiura e o sublime— tivessem que participar no mesmo objeto se queremos "injetá-lo" de desejabilidade.

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No momento ainda não estamos em condições de avaliar se as influencers inumanas vieram para ficar ou se elas estão emergindo graças ao efeito de novidade, que parece ser o ingrediente incendiário de todo desejo, mas não de sua sustentação no tempo.

No fundo, não estamos discutindo se a máquina pode ou não substituir o homem, ou a mulher, o que já ficou evidente que sim, mas se somos capazes de desejar, ao longo do tempo, sem a hipótese da verdade.

Mas atenção!

A prova de ouro não é se podemos amar uma criação literária, platônica ou completamente idealizada, caso para o qual infelizmente temos uma reposta positiva.

Ou seja, há amores digitais que perseveram indefinidamente justamente porque não estão expostos ao "desgaste" da prova de realidade e que, no fundo, são amores infinitos por versões acabadas de nós mesmo.

O desafio não é enganar o amor ou ludibriar o gozo, mas saber se o desejo resiste à hipótese do replicante artificial.

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Um pequeno experimento mental pode ajudar a antecipar os termos do problema: imagine que seu parceiro não é quem você pensa. Enquanto você dorme apresenta-se em sua forma original, ou seja, um terrível alien louva-deus devorador de cabeças humanas.

Se depois da "máscara cair" você continuar desejando ganha desejo "artificial", mas se você for tomado por inibições, aversões ou desgostos, ganha o desejo "natural".

Com isso, cria-se um confronto teórico entre duas poderosas linhas de investigação em psicologia.

Para aqueles que pensam que saber se o outro é de verdade ou de mentira não interfere nos processos cerebrais ou hormonais, que determinam nossas respostas, independentes do que pensamos sobre elas, poderemos aderir a nossos amores artificiais como podemos escolher implantar um marcapasso de prazer no nosso hipotálamo.

Para aqueles que acham que nosso desejo precisa de uma estrutura de ficção, no interior do qual podemos nos dizer que achamos que o outro é real ou não, que seu desejo é verdadeiro ou falso, a inteligência artificial vai ser útil apenas para masturbadores profissionais, cuja opção preferencial de gozo já era essa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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