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OPINIÃO

"Death Stranding": reconstruindo a América, uma entrega de cada vez

Renato Bueno

Do START, em São Paulo

01/11/2019 07h58

Um jogo revolucionário, que vai mudar para sempre a indústria? Mais uma viagem de Hideo Kojima que só vamos entender depois de fazer doutorado? Ou um Mochilão Simulator com toques de crueldade e um bebezinho cheio de atitude? Ainda é difícil responder a essas e outras questões que cercam o primeiro e tão aguardado jogo da Kojima Productions.

Mesmo depois de 70 horas subindo montanhas, fazendo entregas, lendo emails e combatendo entidades do além, ainda não terminei a jornada e sigo em busca de mais respostas. Por enquanto, quero tentar entender o que "Death Stranding" (PlayStation 4 em 8/11, PC em 2020) parece ser.

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É um jogo instigante e atrativo, mas ao mesmo tempo é uma experiência extenuante, baseada em repetição, esforço, resiliência

Fazendo entregas por um mundo melhor

Imagine que você é um "entregador de aplicativo" que precisa distribuir as encomendas o mais rápido possível, e de preferência sem "dar grau" com a refeição dos clientes. Indo bem, você ganha likes, reputação, cresce na vida. Indo mal? você se afoga em um oceano de pixe maligno dominado por forças que destruíram a América e estão prestes a extinguir a humanidade (mais uma vez).

Aí entra Sam Bridges (Norman Reedus), o entregador que, por algum motivo, é a única pessoa capaz de resolver a questão. Algumas vezes como herói do povo, outras como marionete sem vontade própria, Sam vai estabelecendo laços e reconectando essa América fictícia, tentando entender quem está por trás de tudo. (E qualquer tentativa de aprofundar a história aqui corre o risco de estragar a experiência de quem ainda vai jogar, então vamos com calma).

DS carga - Reprodução - Reprodução
Um Sam Porter confiante segue com algumas toneladas de equipamentos e materiais para entrega
Imagem: Reprodução

Por trás da premissa interessante, porém, "Death Stranding" reúne um complexo sistema de elementos de videogame: gerenciamento de recursos, organização de inventário, análise de mapas, exploração de terreno, construção e manutenção de estruturas. Além, é claro, de combate, espionagem, pilotagem de veículos. Prepare-se para ir e voltar de menus, decorar sequências de botões e, se quiser levar a sério, ler dezenas de emails e informações adicionais que vão se acumulando no desenrolar da história.

"Death Stranding" tem o impacto e a grife de um GTA; tem um apelo místico de Dark Souls; tem o humor e as mecânicas sistemáticas de Metal Gear Solid. É um jogo instigante e atrativo, mas ao mesmo tempo é uma experiência extenuante, baseada em repetição, esforço, resiliência, fracassos humilhantes e breves momentos de alívio entre intermináveis percursos de sofrimento. Por vezes desisti, por outras não via a hora de voltar e carregar mais 200 kg nas costas.

Você vai andar, escalar, cair, pegar caminhos errados, aprender e se aperfeiçoar. Como traçar o melhor percurso em um terreno acidentado, calcular o equipamento necessário para andar 2 km na neve e voltar com vida?

DS luta - Divulgação - Divulgação
As cenas de luta e perseguição podem parecer comédia pastelão, mas são sempre emocionantes
Imagem: Divulgação

Com a influência de Kojima, os investimentos da Sony e o elenco estrelado, "Death Stranding" vai atrair um público amplo. Mas não vai ser um mar de rosas, e não é um jogo para qualquer paladar, mesmo nas dificuldades mais amigáveis. Entre uma e outra cena da história, é preciso passar muito gameplay — intrincado e detalhista, que exige muita paciência.

Você vai andar, escalar, cair, pegar caminhos errados, aprender e se aperfeiçoar. Como traçar o melhor percurso em um terreno acidentado, calcular o equipamento necessário para andar 2 km na neve e voltar com vida? É, também, um teste de autoconfiança: levar menos carga, e com isso ganhar velocidade e agilidade, ou levar tudo o que for possível para estar preparado para quase tudo?

O jogo impõe severas limitações logo de cara, e aos poucos vai eliminando essas limitações e dando mais poderes. "Minha bota está estragando muito rápido", você pensa, e logo em seguida "Parabéns! Você ganhou uma bota nível 2". "Death Stranding" dá recompensas a conta-gotas, e nunca deixa de acrescentar mais desafios e manter o clima de opressão.

DS Mama - Divulgação - Divulgação
Mama (Margareth Qualley) é uma das grandes personagens do jogo
Imagem: Divulgação

Road trip mochileira

Sam é o tradicional "molequinho de recados", que vai repetir aquilo que fazemos em todos os RPGs: pegar uma missão aqui e devolver lá, coletar 5 itens perdidos ali, entregar 10 itens que são necessários lá do outro lado do mapa.

Nessa "roadtrip por terrenos vulcânicos" não vai ser fácil reconstruir a América. Terreno hostil, inimigos misteriosos e condições climáticas adversas vão decorar os cenários e tornar a vida de Sam um martírio. Para fazer uma entrega bem-sucedida, você precisa ficar atento ao terreno, condições climáticas, possíveis ameaças. Na maioria das vezes, porém, a atuação de Sam é bem recebida pelos diversos NPCs, o que ajuda a incentivar o jogador a seguir em frente.

DS Escada - Divulgação - Divulgação
Em terra destruída, quem tem uma escada é rei
Imagem: Divulgação

Chega a ser bizarro como "Death Stranding" pega alguns dos conceitos mais imutáveis de jogos de RPG e transforma em rotina. Gerenciar inventário, trazer e levar itens, tentar decifrar mapas e tentar escalar montanhas. Tudo isso, que pode ser considerado a parte "chata" de muitos jogos, é a experiência fundamental aqui.

Fabriquinha de Likes

DS Reputação - Reprodução - Reprodução
Reputação de Sam como entregador leva em conta velocidade, volume e preservação da carga
Imagem: Reprodução

Os Likes são a moeda social do jogo. O meio básico de acumular esses pontos é fazendo entregas com qualidade: velocidade, conservação da carga e volume transportado contam pontos, que geram likes, que, somados, vão aumentando sua reputação de entregador. Com o tempo, isso vira benefícios no gameplay.

Em um ambiente hostil, sem outros jogadores, é reconfortante encontrar uma placa no fim do mundo, que recupera sua stamina e toca uma musiquinha

Esses "joinhas" estão por todos os lados, e são o principal refresco na aventura opressora. Em um ambiente hostil, sem outros jogadores, é reconfortante encontrar uma placa no fim do mundo, que recupera sua stamina e toca uma musiquinha, e em troca o autor da placa ganha likes. Pare perto de uma escada, e você tem a opção de martelar o painel de toque do Dualshock para distribuir likes para o autor daquela construção. Quanto mais você evolui seu lado social, maior será o tempo para dar likes em estruturas de outros jogadores.

Constantemente você será informado do balanço de likes: alguém deu likes por sua ponte construída lá atrás; ou, voltando ao jogo depois de um tempo parado, você pode receber um um resumão indicando que você recebeu 192 likes de 28 jogadores. Então se você gosta de números e estatísticas, fique tranquilo, porque "Death Stranding" está de olho em tudo. Um pouco antes de terminar este texto, por exemplo, eu tinha 208 Km percorridos e 322 cargas entregues, totalizando quase 4 toneladas.

DS BB - Divulgação - Divulgação
Se você ainda não entendeu qual é a do bebê, fique tranquilo: Deadman e Sam também estão tentando descobrir
Imagem: Divulgação

Só sei o que sentir

DS é um jogo exigente, demorado, que sobrecarrega não só o personagem com cargas gigantescas, mas também o jogador com um fluxo sem fim de informações, sejam em entrevistas, dicas ou emails. É preciso ter paciência até dominar o ritmo e a dinâmica de jogo, ou você corre o risco de deixar um pequeno item para trás e só perceber depois de 20 minutos andando por vales e crateras cheias de inimigos.

Para além da rotina e da repetição, porém, "Death Stranding" é capaz de provocar situações curiosas. Como quando...

  • Achei que estava "reciclando" uma escada de outro jogador, quando na verdade eu a estava destruindo (desculpa, amigo!);
  • Encontrei várias construções de um mesmo jogador, em momentos diferentes do jogo, que me salvaram na hora decisiva (boa, PoshAlligator!);
  • Fiquei procurando por IDs de conhecidos: será que tenho algum amigo real que acabou caindo na mesma instância do jogo que eu?
  • Encontrei tantas encomendas "com dono" espalhadas no chão em um lugar específico: fiquei imaginando como teria sido o confronto que resultou em tantas perdas;
  • Pensei "Isso não deve fazer bem para a minha coluna". E também "É melhor o pessoal da Segurança do Trabalho" não ficar sabendo desse jogo;
  • Será que "Death Stranding" sincroniza os passos com o Pokémon GO? (Gostaria que sim)
  • Sofri ao ver minha carga perdida sendo levada pelo rio. Depois fiquei aliviado ao voltar meia-hora depois e perceber que tudo tinha encalhado numa curva do rio, e estava fácil de ser recuperado.

Abrindo as porteiras

Apesar da pretensão e profundidade com que se anuncia, "Death Stranding" será uma indústria de memes, situações engraçadas e outras momentos não planejados que simplesmente vão quebrar o clima de seriedade. Mas os criadores do jogo, até certo ponto, provavelmente sabem disso, e entram na piada muitas vezes, com Sam cuspindo cerveja na sua cara, ou com pequenos easter eggs descontraídos ao longo da história.

O jogo tem um potencial que só vai ser posto à prova de verdade depois do lançamento, dependendo das maluquices que a comunidade desenvolver. É importante lembrar que todos nós que jogamos "Death Stranding" até agora estávamos em isolamento, sem poder comentar sobre o jogo, cada um perdido com suas próprias ideias. Isso deve mudar drasticamente a partir de agora, e principalmente após o lançamento, com a comunidade unindo forças e tendo novas ideias, e as discussões se propagando pela internet.

Apesar da pretensão e profundidade com que se anuncia, "Death Stranding" será uma indústria de memes, situações engraçadas e outras momentos não planejados que simplesmente vão quebrar o clima de seriedade

DS soldados - Divulgação - Divulgação
Ninguém falou que seria fácil
Imagem: Divulgação

Desde que revelei que estava com o game, fui metralhado por dúvidas de colegas da área, jornalistas de outras editorias e até conhecidos que não se envolvem muito com jogos: é bom mesmo ou vai ser uma bomba? É o melhor jogo do ano? Inaugura um novo gênero? Qual é o lance do bebezinho? Faltam quantas madrugadas para você terminar isso aí?

Mas, por enquanto, eu só tenho novas perguntas.

Será que eu estou jogando "certo"? Como eu vim parar nessa montanha sem nenhuma corda e com uma bomba de 40 kg nas costas? Como vai ser quando mais centenas de milhares de jogadores estiverem nesse mundo? E talvez a mais difícil delas: como explicar para minha mulher (e meus gatos) que eu não fiquei louco, só estou balançando o controle no ar para fazer meu bebê dormir?

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