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Paulo Anshowinhas

REPORTAGEM

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Skatistas cegos contam como radicalizam em manobras nas pistas

O skatista cego Fernando Araújo, que anda de skate com uma bengala-guia - Paulo Anshowinhas/ UOL Esporte
O skatista cego Fernando Araújo, que anda de skate com uma bengala-guia Imagem: Paulo Anshowinhas/ UOL Esporte

Colunista do UOL

17/02/2022 04h00

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Se andar de skate já é uma tarefa difícil, imagine sem ver por onde anda. Pode parecer impossível, mas andar de skate mesmo sem enxergar, e ainda realizar manobras em obstáculos e paredes com grande inclinação, é uma realidade para alguns destemidos.

Há duas semanas, o canal The Skate Tube postou um vídeo no Instagram do skatista americano Justin Bishop, de 35 anos, fazendo um 50/50 (raspando os eixos em um corrimão), um blunt into fakie (parando apenas com a rabeta do skate no topo do obstáculo e voltando de costas) e depois um heel flip into 50 (um flip com o calcanhar caindo com os eixos no obstáculo). Manobras de alto grau de dificuldade.

Detalhe. Justin é completamente cego.

Justin perdeu a visão aos 25 anos devido a uma doença degenerativa chamada retinite pigmentosa. Mesmo assim, voltou a andar de skate e participou recentemente de um comercial da Ruffles andando de skate com narração do astro do basquete americano LeBron James.

Em junho de 2019, Justin estrelou sua própria vídeo-parte produzida pela revista Thrasher em valas e ruas da Califórnia.

Na semana passada, o site The Berrics também também postou outras manobras de grande impacto de Justin, como um backside boardslide (deslizando com o shape na borda de um obstáculo, e descendo de costas para a parede) com a legenda: "ele merece muito respeito".

Para completar em grande estilo, nos mês passado foi a vez da tradicional revista americana The New Yorker lançar um documentário curta-metragem intitulado "One Day You'll Go Blind" (Um Dia Você Ficará Cego, em tradução livre), do diretor Leo Pfeifer, com uma visão emocionante sobre a história de vida de Justin Bishop.

Skatista cego carioca emociona plateia e inspira novos adeptos

Assim como o americano Justin, no final do ano passado, a plateia do Oi STU Open, no Rio de Janeiro ficou boquiaberta ao ver a performance do skatista carioca Fernando Araújo. Ele surpreendeu a todos ao "dropar" (descer do topo da pista) com seu skate, de uma parede de cerca de três metros de altura com sua bengala de plástico, sem enxergar um palmo à sua frente.

Conhecido como Skatista Cego, em sua página no Instagram, Fernando Araújo, o "Nando", de 27 anos, teve descolamento de retina ao nascer e ficou com apenas 20% da visão em um olho e cego do outro, mas aprendeu a conviver com essa questão.

Morador de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, Nando, segundo ele próprio diz, "leva uma vida normal".

Ele mora sozinho, limpa a casa, faz comida, lava roupa, monta e desmonta o próprio skate e vive com os rendimentos como aposentado por invalidez do INSS.

Nando anda de skate quatro vezes por semana e ainda deixa dois dias para preparação física. Para aprender manobras, como não consegue assistir aos vídeos, ele chama seu treinador e videomaker, Leonardo Scott, que desenvolveu um método próprio de uso da bengala-guia.

"O Nando não aceita ser chamado como deficiente, prefere ser chamado de cego. Eu não o vejo como deficiente, mas eficiente. Ele é um skatista de verdade e representa muita força, muita garra, e é um exemplo de superação para mim", afirma Leonardo.

"Inclusive o Nando pediu para eu colocar uma venda nos olhos para sentir o que ele sente e, ao fazer isso, eu acabei caindo. É perigoso", comenta.

Skatista Cego - Leo Scott/ Divulgacão - Leo Scott/ Divulgacão
Skatista Nando Araújo, o "skatista cego" ao lado do seu treinador Leo Scott
Imagem: Leo Scott/ Divulgacão

Nando conquistou apoiadores, e um deles se encantou ao falar sobre o rapaz.

"O Nando é uma pessoa cheia de vida, que veio nos ensinar que as limitações estão dentro da gente. Assim como eu fiquei emocionado de ver ele dropar de um bowl de 3 metros de altura, algo para mim surreal, essa emoção também deve ter tocado muita gente e vai continuar inspirando outras", afirmou Jorge Kuge, skatista fundador da marca Urgh! Skates, que apoia o menino.

"O skate é um instrumento de inclusão social poderoso, e agora a gente percebe que não tem limites", completa Kuge.

O amigo e paraskatista premiado Vini Sardi, que participa das competições de skate sem usar suas as próteses para as pernas, diz: "Para mim o Nando é uma grande inspiração, onde todos andamos juntos de igual para igual e isso torna o skate inclusivo e tão legal", comenta.

Para entender melhor como tudo isso é possível, a coluna entrevistou o skatista carioca, primeiro por telefone e depois ao vivo, em sua passagem por São Paulo, onde participa neste domingo (20) de uma prova de skate adaptado: o Campeonato de Paraskate na pista do Corinthians, na Rua São Jorge, 777, no Tatuapé. Junto com ele, participarão outros 20 participantes, entre eles, os campeões Vini Sardi e Felipe Nunes.

Nando foi ao Vale do Anhangabaú para fazer treinamento nos obstáculos e foi muito aplaudido e reverenciado pelo grupo de skatistas do local a cada manobra que realizava com sua bengala-guia. Gilza Thompson, do Projeto Skate Inc, de inclusão e acessibilidade ao skate para pessoas com deficiência, que o acompanha em São Paulo, ficou emocionada.

"Minha filha de 17 anos tem uma doença degenerativa, a retinose, e vai perder a visão. Ver o Nando evoluir é algo emocionante", disse Gilza com os olhos em lágrimas.

Por curiosidade, perguntamos como ele conseguia ler as mensagens do celular. Nando explicou que o aparelho dele tem um leitor de tela, que transforma em áudio o que vem escrito, e também o inverso, que transforma áudio em texto, quando ele precisa escrever.

Para andar de skate sem enxergar notamos que Nando cria um verdadeiro "mapa mental" dos obstáculos, contando passos ou tateando com sua bengala por onde passa. Ele explicou nesta entrevista algumas dessas técnicas.

UOL Esporte - Como você se orienta em relação a vertical e horizontal no skate e ainda como consegue identificar os obstáculos?

Nando Araújo - Primeiro, eu faço o reconhecimento andando na pista sem o skate. No caso do park é mais tranquilo porque é só transição, mas, no street, eu tenho de passar a mão na pista, nas escadas, porque eu ando com a bengala. Para saber se é vertical ou horizontal, eu passo a mão na parede de cima para baixo, escorrego algumas vezes lá do alto para sentir bem a transição e passo o pé para ver onde começa a curva.

UOL Esporte - Já levou muitos tombos tentando ou tropeçando? Algum mais sério?

Nando Araújo - Já caí muitas vezes, mas o mais sério foi quando bati com o ombro e fiquei uma semana com o braço na tipoia. Mas teve um tombo que o pessoal achou que eu havia me machucado feio, quando eu fui "dropar" o paredão Duó (pista do Rio de Janeiro), da parte mais funda. Eu estava fazendo a batida de back (costas) no ladrilho, e teve uma hora que o truck (eixo) de trás bateu no coping (borda) e foi uma das quedas mais assustadoras que eu já passei.

UOL Esporte - Você já ficou constrangido ou sentiu preconceito por ser cego e andar de skate?

Nando Araújo - Constrangido é difícil, mas tem piadinha de gente no ônibus que diz que estou me fingindo de cego, que nunca viu um cego andar de skate, essas coisas que chateiam.

UOL Esporte - Como é a vida de alguém que vive no escuro e qual a importância do skate para você?

Nando Araújo - Skate para mim é uma sensação de liberdade e um sonho realizado. Estou em cima do skate desde criança, o skate sempre fez parte da minha vida, eu sempre quis andar de skate. Ao estar em cima do carrinho parece que eu não tenho nenhuma deficiência visual

UOL Esporte - E qual o seu maior sonho?

Nando Araújo - Eu tenho vários, eu quero estar nos X-Games e nas Paraolimpíadas no skate, mas meu maior sonho mesmo é de não ter preconceito contra os deficientes visuais no skate e ter uma categoria só nossa. Minha mensagem é: nunca desistir, mesmo com problemas de grana, preconceito, não se pode parar, tem sempre de continuar em frente.